Por Ticiano Osório
[caption id="attachment_8600" align="alignright" width="372" caption="Foto: arquivo pessoal"][/caption]
No jornal Zero Hora de hoje (26/10/13), o pai da pequena Aurora, o jornalista Ticiano Osório, descreve o dia-a-dia de altos e baixos que sua pequena passou na UTI neonatal.
1º DIA
Foi a Helena quem ditou a escolha do nome da irmãzinha. Ela queria porque queria Rapunzel. Para contentá-la, a Bia e eu estabelecemos uma espécie de votação entre as princesas Disney. Acabou ganhando Aurora, da Bela Adormecida – mas de adormecida nossa Aurora não tem nada. A mana nem esperou a aurora: nasceu de madrugada, às 3h44min deste domingo, 1º de setembro. (A propósito: eu não entendo nada de numerologia, mas quem me conhece sabe que adoro estatísticas e comparações. Pois bem, a soma dos algarismos das datas de nascimento da Helena e da Aurora coincide: 03/11/2009 = 3+1+1+2+9 = 16. 01/09/2013 = 1+9+2+1+3 = 16.)
Nossa Aurora está mais para outra princesa Disney, mais contemporânea: Merida, a Valente. Resolveu vir antes da hora, para enfrentar este mundão ainda desarmada. Nasceu prematura, no dia em que ingressava na 29ª semana de gestação (são menos de sete meses). Veio tão rápido que nem deu tempo para a anestesista chegar ao hospital: a Bia, que fez cesárea na Helena, teve um parto o mais natural possível. (E aqui abro um parêntese para agradecer, de coração e mente, à doutora Clarissa Amaral, por sua segurança, sua clareza e seu humanismo.)
Vou confessar a vocês: no parto da Helena, me emocionei, claro, mas digamos que em um nível E.T. na Escala Spielberg. Com a Aurora, foi nível A Lista de Schindler.
Chorei compulsivamente, a ponto de meus óculos ficarem embaçados. Porque, por mais que a pessoa já não seja pai de primeira viagem, acredito que ninguém está preparado para um nascimento prematuro. A Bia estava desde a última segunda-feira tendo contrações, mas o desejo médico era de que, com repouso absoluto, ela fosse conseguir empurrar a barriga para 32, 34 semanas. Só que, na madrugada de sexta para sábado – praticamente 24 horas antes de a Aurora nascer –, a bolsa rompeu. Ou seja: começamos a semana sabendo que tínhamos pelo menos mais dois meses de gravidez pela frente; chegamos ao meio dela cientes de que a Aurora poderia vir antes; e terminamos com o aviso de que seria para agora.
E este agora envolvia muito mais riscos. Daí me lavei em lágrimas diante da coragem da Bia (que aguentou literalmente no osso a excruciante dor que há de ser a do parto normal), da coragem da Aurora (que nasceu com 37 centímetros, 1,3kg e tão cabeluda quanto a Helena). Não vou negar: me assustei e ainda estou assustado, mesmo que tenha sido um tremendo alívio quando me chamaram para vê-la já a caminho da incubadora. A expectativa é de que nossa filha permaneça uns três meses na UTI Neonatal do Moinhos de Vento. Cada dia, contou a pediatra (com nome apropriadíssimo: Belém), será uma aventura; cada dia, uma vitória.
Valente, nossa Aurora.
2º DIA
A Helena — coitada!, diz a mãe — tem o pé igualzinho ao meu. Com a Aurora, a pediatra já veio me dizendo:
— Ela tem o segundo dedo maior do que o dedão, vai mandar no marido.
Ao que prontamente respondi:
— Puxou a mãe.
3º dia
Aurora já está tomando, via sonda, 1ml a cada duas horas, o leite da Beatriz. É a melhor notícia do meu dia, que começou ruim: devido ao estresse dos últimos dias, no que a Baixinha II nasceu minha imunidade baixou violentamente. Resultado: estou resfriado e impedido de entrar na UTI Neonatal.
4º dia
Hoje é dia de colo. O primeiro colo.
7º dia
Apartado da Aurora por conta do maldito resfriado, busco conforto relendo as carinhosas mensagens de amigos no Facebook (onde este diário nasceu):
10º dia
Enfim pude rever minha filha. Enfim caiu a ficha: eu tenho uma filha prematura internada na UTI Neonatal. Há um ritual a cumprir: tirar a aliança, lavar muito bem as mãos e o braço até a altura do cotovelo, fechar a torneira com uma toalha de papel para não encostar nela novamente, colocar o avental (geralmente rosa, mas também tem amarelo e azul), emendar o bom-dia ou o boa-noite à pergunta que mais farei nos próximos dias — ela ganhou peso? Eu a vejo através da incubadora — posso tocá-la, ela inclusive tem o que as enfermeiras chamam de “prescrição de colo” (melhor remédio não deve existir), mas ainda estou ressabiado por causa do resfriado. Está só de fraldinha, mas tenho que adivinhar seu rosto, encoberto pelo CPAP, o ventiladorzinho que a ajuda a lembrar de respirar (o pulmão é um dos últimos órgãos a amadurecer). No pezinho, pisca a luz vermelha do oxímetro, o aparelho que mede a oxigenação do sangue — o termômetro das “quedinhas”, palavra que, a cada manhã, vamos adorar ouvir quando precedidas de um “não teve”. É de bipes e alarmes a onipresente trilha sonora da sala, com a qual vou me acostumar a ponto de, futuramente, pensar que seria legal para ela, na ambientação em casa, ter um móbile que reproduzisse os sons dos monitores de frequência cardíaca e respiratória.
É um dia feliz.
12º dia
Aurora à noite:
14º dia
Não sou o primeiro nem o último pai de prematuro, e nem somos tão raros — quase 12% dos partos no Brasil são de bebês nascidos abaixo das 37 semanas de gestão, segundo pesquisa capitaneada pela UFPel e divulgada em agosto. Mas dentro desse microcosmo me sinto um pouco privilegiado em relação a companheiros de UTI. Por causa da Helena. Já enfrentei a paternidade, e eles estão conhecendo tudo antes da hora e em uma situação que requer cuidados redobrados. E sem outro filho para dividir o foco de atenção. Meu colega Alexandre Ernst, pai do prematuro Matheus, disse que achou a rotina de UTI extremamente cansativa e estressante:
— A gente ficava das sete da manhã às 10 da noite no hospital. Chegava em casa com aquele bip-bip ainda apitando nos ouvidos.
A Bia e eu nem temos tempo para cansar: a Helena o consome.
17º dia
Aurora foi promovida ontem para a UTI 2. O que significa que já está, digamos, mais independente e que já pode “receber” visitas. Levamos a Helena para conhecê-la ontem. A Baixinha I ficou entusiasmada, praticamente desesperada para atravessar a janela de vidro e colocar no colo a mana — levantava o dedinho para o alto e falava para a Bia, que estava com a Aurora: “Posso entrar? Só um pouquinho?”. Te amamos, Lelê. A Lelê já te ama, Aurorinha.
18º dia
Ontem eu dei meu primeiro colo para a Aurora. O afeto requer logística: enfim consegui estar presente para esse momento que tem hora marcada, e graças à visita dos vovôs Cláudio e Maria Regina, que ficaram tomando sorvete com a Helena enquanto a Bia e eu afofávamos a Baixinha II. Fiquei tenso – muita força para pouco corpo (mais tarde, a hora do banho me dará medo: ela é tão frágil!). Mas depois que duas bolitas me fitaram; depois do que eu acho que foi um esboço de sorriso (e justo quando eu estava cantando para ela duas músicas, Sonífera Ilha e Vagalumes, que a Helena canta na minha garupa na ida/volta da escola); depois da preguicinha boa dela; depois de ontem sou um novo homem. Sou um novo pai. Sou, definitivamente, pai de novo.
21º dia
Dindos da Helena e da Aurora (respectivamente, o Edu e a Lari) foram fazer visita. E visita de prematuro é que nem casamento — só podem duas pessoas — em igreja concorrida (você não pode escolher muito horário, não: tem às 16h30min e às 21h). Entramos com eles (pais não contam) para espiar a Aurora pelo aquário — sorte: “nossa” incubadora era bem em frente à janela. O corredor é decorado com pôsteres emocionantes: são pais e mães que compartilham suas temporadas na UTI Neonatal e agradecem imensamente o cuidado e o carinho dos médicos, enfermeiros e técnicos (aqui, nestas páginas, eu faço o mesmo: obrigado, doutoras Fernanda, Belém, Alessandra, Luciana, Ana Paula; obrigado, Vinícius, Cassiano, Gi, Patrícia, Cláudia, Marcele, Juliana, Priscila, Janine, Pamela, Carol, Eduardo, Andriele, Alice, Daiane e as duas Elisângelas; obrigado, também, às mamães Andréa e Luana, que dividiram com a Bia experiências e expectativas; e, por favor, desculpem-me quem eu esqueci). A Lari me confessou depois: ficou tão impressionada pelo ambiente que precisou segurar o choro, e uma história emoldurada chamou tanto sua atenção que não resistiu a googlear quando voltou para casa. Aí, chorou.
25º dia
Aurora no melhor lugar do mundo: o colo da mãe, ela própria uma prematura, trigêmea nascida na 32ª semana de gestação, com 1,480kg (imaginem o drama dos meus futuros sogros, com as três filhas na UTI), outro fator que nos tranquiliza um pouco em relação a Baixinha II. Que segue no processo de ganhar peso. A pediatra diz que a Aurora é “muito comportada”.
— Não tem quedinhas. Só dorme, para engordar.
27º dia
Uma coisa que ajuda bastante os pais de prematuros, sejam eles experientes ou estreantes na paternidade, é conhecer histórias de quem passou por isso.
No blog botoezinhos.com, que uma amiga me mandou, descobri a história da Rita e de sua filha Bella, que passou quatro meses e meio no hospital e, às vésperas do nascimento da Aurora, comemorou seus quatro anos de vida.
No www.projetopequenosguerreiros.com, pais relatam sobre seus dias e noites na UTI, sua angústia e sua fé.
No site Prematuridade.com, mais depoimentos tocantes (como “O fofo Rafael e sua vontade de viver”) e uma porção de informações e dicas, da amamentação à vacinação.
28º dia
Amillia Sonja Taylor nasceu em 2006, em Miami, com apenas 283 gramas e 24,13cm — e sobreviveu.
Arthur Carvalho nasceu em 2006, no Rio, com apenas 385 gramas e 23cm — e sobreviveu.
31º dia
Hoje, 1º de outubro, é o mesversário da Aurora. Cheguei ao hospital e ela estava acordada, toda animada do alto de seus 42cm, agitando o corpanzil de 1,766kg (foram mais 38g acumulados de ontem para hoje). Do pai, ela ganhou de presente o colo matutino. Da mãe, ela ganhará ao longo da semana o acesso direto ao produtor de leite, sem atravessadores. A mana está poupando para transbordar carinho e amor quando a Baixinha II for para casa.
E eis aí o grande presente que a Aurora e os outros 3/4 da família ganharam: pela evolução que ela vem mostrando, por não ter sofrido nenhuma intercorrência, nenhuma quedinha, a pediatra acredita que não vá demorar mais do que 15, 20 dias para a Aurora ir para casa.
Tic-tac.
32º dia
As notícias não param!
Aurora bateu seu recorde de ganho diário de peso: hoje pesou 42g a mais do que ontem (o teto era de 40g, mais tarde, chegará a 60g). Mas esta não é uma marca boba daquelas que só existem para entrar no Guinness Book, não é apenas um mero dado estatístico. Não. O recorde tem consequência: agora com 1,808kg, hoje a Aurora já vai para o berço! E para o seio da Beatriz!
Que seu corpinho mantenha a temperatura fora da incubadora. Que sua boquinha aprenda a sugar rapidamente.
37º dia
Aurora já é uma menina 2.0. (Ou, na versão sou-jornalista-esportivo, Aurora já está classificada para a Copa do Mundo da Rússia: hoje pesou 2.018.)
39º dia
Helena produziu, sozinha, dois desenhos para levar na visita à mana hoje de noite. Em um deles, estão ela própria e a Aurora. No outro, a Beatriz e eu. Cada par de mãos dadas. A Baixinha I fez questão de assinar – seu autógrafo é um H seguido de uma porção de letras de algum idioma alienígena, tipo Alien.
41º dia
Uma hora a gente teria de passar por uma frustração (na verdade, depois de tudo o que vi e li sobre complicações em prematuros, posso dizer que fomos abençoados). Hoje, pela primeira vez, a Aurora perdeu peso (5g). A Bia, com um princípio de dor de garganta, não pôde dar de mamar. De tarde, foi a Aurora que passou para o isolamento, porque ficou resfriadinha. Para completar, a pediatra achou por bem (e nós também, claro) adiar um pouco a alta da Aurora — seria ali pelo dia 20, 21, mas deve ser no fim de outubro, começo de novembro. Faz sentido, afinal, neste domingo a Baixinha II recém vai entrar naquela que seria sua 35ª semana de gestação.
46º dia
Que coisa: Bia e Aurora já estão afastadas há quase uma semana. A Bia ainda não conseguiu ficar as “48 horas assintomáticas” da gripe. Sou como o pombo-correio do carinho dela para a Baixinha II. A Aurora, por sua vez, segue no isolamento, pelo mesmo motivo (tenho que dar colo de máscara e luvas), Hoje, para me assustar um pouco, perdeu 25g (mas a pediatra já me tranquilizou, dizendo que uma coisa – o resfriado – não tem relação com a outra – a perda de peso). Lá em casa, a gente segue marcando pauzinhos na parede: já são 46 dias...
48º dia
Nada como uma sexta-feira depois da outra. Hoje o dia começou com a liberação da Bia para ver a Aurora — que ganhou 40g (está com 2,270kg) e, desde ontem, já está sem sonda, sem o bigode, mas ainda no isolamento. Na minha visita, pude dar protovit (um desastre: por causa da máscara, meus óculos ficam embaçando; com a luva, eu, que já não sou muito coordenado com as mãos, perco um pouco da sensibilidade para dosar a seringa; a Baixinha II, por sua vez, ficou toda hora babando, afinal, a vitamina foi só um despiste enquanto não vinha a mamadeira de 50ml dela) e assisti às duas primeiras vacinas, uma na coxa e outra, a BCG, no braço.
O dia está chegando.
51º dia
É hoje!
Ou talvez eu devesse dizer: justo hoje? A Aurora vai ter de deixar a segurança hospitalar no meio dessa chuvarada?
Por sorte, na hora em que fomos para casa, depois do laço que a Bia e quatro enfermeiras levaram para ajustar o bebê conforto (não que eu, inapto para qualquer coisa que envolva cordas e faixas, fosse ajudar muito, mas nesse momento eu estava do lado de fora da UTI, marcando consultas médicas para a Aurora), e que na verdade só deu para ser usado porque a Baixinha II é pequerrucha (45cm e 2,3kg), ainda bem que na hora da definitiva alta o céu já estava quase limpo. Um revés a menos diante de todos os que se desenharam ao longo deste 21 de outubro.
Porque, olhando em retrospecto, talvez eu devesse dizer: é hoje... Substituir o festivo ponto de exclamação pela ambiguidade das reticências. Lógico que ficamos tri felizes em, finalmente, a família lá em casa pular de trio para quarteto. Mas a alta é como um novo parto. Depois de 51 dias, a Aurora sai de um ambiente controlado, onde era pesada todos os dias e tinha a supervisão de um exército de médicas, enfermeiras e técnicos — agora é tudo conosco, e com a gente não tem troca de plantão: de três em três horas (ou menos, dependendo da fome dela), toca o despertador para a rotina de trocar fralda, dar o seio, oferecer um complemento em mamadeira, pôr para arrotar, observar se não há regurgitação, mudar de roupa se houve, esterilizar as mamadeiras para o próximo turno de uma equipe só. No intervalinho que sobra, arriscamos uns cochilos, de luz acesa e sempre com o sentido de alerta ligado para os grunhidos, os chorinhos e os soluços de gente grande. Ficamos paranoicos com espirros e germes (aliás, nossa gatinha, a Nina, teve de ir para a casa da minha mãe, e nossa cachorra, a Filó, sofreu restrições de movimentação). E ainda tem o fator Helena: ela foi muito carinhosa com a mana, mas, naturalmente, na primeira noite quis mostrar quem é a primeira princesa.
Somo ao cansaço (acordamos na terça em modo The Walking Dead) as pontas de preocupação eriçadas durante a conversa com a pediatra na hora da alta. Como é comum em prematuros, a Aurora tem retina avascular, ou seja, os vasos sanguíneos da retina não estão totalmente formados. Na semana que vem, ela passará por um novo exame oftalmológico, para averiguar se os vasos já se formaram, se continuam do jeito que estão ou se desenvolveram de forma anômala (o que não seria raro, pela prematuridade; nesse caso, o mais grave dos cenários é a cegueira, mas as alterações também podem ser revertidas espontaneamente. Vocês imaginam a minha ansiedade até as 11h da próxima terça-feira. Louco para escrever não um “É hoje”, mas um “Foi hoje” seguido de notícias boas).
Outra coisa que a pediatra nos disse: o primeiro teste de audiometria registrou “ausência” no ouvido direito. Novamente, pode ter sido uma surdez momentânea, e eu aqui sofrendo por antecipação enquanto espero a data de refazer o teste. Em resumo: cada dia, uma aventura; cada dia, uma vitória. Me empresta tua valentia, minha filha. Tu tens de sobra.
Fonte: Zero Hora
*Na notícia original, você pode ver também o vídeo que o pai fez contando mais sobre esses dias que a família viveu.