Se ter um bebê prematuro é sempre complicado, imagine o que é quando se está em outro país. Catarina Oliveira da Costa contou-nos como é ser mãe ‘lost in translation’.
Há três anos reencontrei um ex-namorado, que estava no Japão (é treinador dos campeões de futsal Nagoya Oceans). Foi paixão à segunda vista – larguei tudo em Portugal e fui para Nagoya com ele. Estava no Japão há sete meses quando soube que estava grávida. Comecei logo a ser acompanhada numa clínica que tinha tradutor. No Japão, a comunicação é um drama para um estrangeiro. Está tudo em japonês, sinais, tabuletas, supermercado… Ninguém fala inglês, nem nos hospitais. Eles não praticam, nada tem legendas, depois são perfeccionistas e não querem parecer mal, por isso não falam.
Nesta clínica, onde eu estava a sendo acompanhada, havia um intérprete, mas as consultas eram caricata e quando é para fazer um exame, deitas-te numa cadeira com uma cortina, e o médico nunca olha para ti. Ninguém vê a cara de ninguém. A tradutora acompanhava o exame, traduzindo tudo. Sempre esteve tudo bem, até julho, quando uma amiga veio visitar-me. Esforcei-me um bocado a limpar a casa e fomos a um espetáculo de sumo. Quando fui à casa de banho, senti-me a perder líquido. Fomos de urgência para a clínica, mas eu tinha perdido quase todo o líquido amniótico. Resultado: estava de 23 semanas e tinha de ficar internada, mas não podia ficar naquela clínica. Lá fui de ambulância para o hospital da Cruz Vermelha. O Pedro, o meu marido, teve de sair do país, já tinha viagem marcada para o dia seguinte e a minha amiga tinha ficado em casa, sem saber como se virar no Japão. Felizmente, o clube do Pedro tinha um tradutor que veio logo ter connosco e as coisas acabaram por se organizar.
Como se fazer entender?
Fiquei três semanas nos cuidados intensivos, a soro, sem me poder mexer. Disseram-nos imediatamente com o que contávamos: no Japão não escondem nada aos pais. Alertaram-nos para o risco de ter um bebê muito prematuro, mostraram-nos fotografias de bebês que tinham sobrevivido, e ao mesmo tempo que foi um choque foi também uma esperança. Não podia levantar-me da cama nem sequer sentar-me e comia meia de lado. Estava algaliada e totalmente dependente das enfermeiras que tinham de me dar banho, lavar a cabeça... Passavam a vida a entrar no quarto porque, como estava ligada a uma data de máquinas, tinham de me controlar, além de ter um dreno na barriga.
Sentia-me sozinha: a assessora do clube vinha todos os dias visitar-me e falava com os médicos, depois transmitia ao tradutor e o tradutor transmitia-me a mim. Comunicar com as enfermeiras era mais complicado, mas elas tiveram uma ideia prática: escreveram-me montes de folhas com frases em inglês e em japonês, para eu usar quando fosse o caso, como ‘tenho fome’, ou ‘dói-me a barriga’. Eu andava sempre com as folhas atrás ou ia ao Google Translator no telemóvel. Mas o que fosse informação mais específica e imediata era muito difícil. Uma vez tive o cateter de urina entupido e até me fazer entender sofri horrores.
Além da Erica, a tradutora do clube, tinha a Miho, uma amiga nossa, e duas portuguesas, a Carla e a Cláudia. Precisei muito delas para coisas básicas, por exemplo, para me lavarem e trazerem a roupa.
O que se come num hospital japonês? Sopa de miso em todas as refeições, inclusive ao pequeno almoço. E depois carne e peixe com oniguiris, bolinhos de arroz, e muitos vegetais, muitos cogumelos, sopa de wudon com carne. Às vezes até tenho saudades da comida do hospital (risos).
‘Omedetou!’
A Madalena nasceu às 26 semanas, a 2 de agosto de 2015. O Pedro estava no Irã e as comunicações eram más. Foram dias difíceis, Internet era mentira e a diferença horária era enorme. O parto podia acontecer a qualquer momento, mas tentava não o preocupar demais. Ambos sabíamos que eu estava bem entregue. Com os meus pais não podia falar muito ao telefone, mas trocávamos muitas mensagens.
Às 25 semanas comecei com contrações, mas conseguiram controlá-las até às 26. Nunca tive tantas mãos a mexerem em mim, por fora e por dentro. O parto aconteceu de um dia para o outro. Comecei outra vez com contrações e eles decidiram não esperar mais. O Pedro ligou-me mas eu não quis falar com ele, não queria quebrar ali, já era um dó estar sem ele. Quando me levaram para a sala de partos, só ouvia mulheres a gritar, era aterrador, porque no Japão não dão epidural a ninguém, para eles o parto ‘natural’ é o melhor. Ainda por cima as japonesas são muito magrinhas e os bebês enormes. As grávidas são supercontroladas, não podem engordar mais de 10 quilos. E eu só pensava: como é que negam a epidural às mulheres num país tão desenvolvido em muitos outros aspetos?! Claro que aquilo me assustava, mas às tantas já nem pensava nisso, o que eu queria era que o bebé fosse saudável, porque todos os cenários eram possíveis: ela podia morrer, podia viver mas ficar com muitas sequelas, portanto, o parto e as dores eram o menor dos problemas. Enfim, quando ela nasceu, a vantagem é que pelo menos era pequenina… (risos)
Na sala de partos havia uma multidão de médicos e enfermeiros. Deixaram entrar a minha amiga Cláudia, mas não levava bata nem nada. Nem eu. Íamos como estávamos.Em meia hora, a Madalena estava cá fora.
Quando nasceu, todos gritaram ‘Omedetou!’ (parabéns) e bateram palmas. Ela chorou e foi logo posta numa incubadora e levada para o Núcleo de Prematuros. Achei-a pequenina, mas estava à espera de muito pior. Como tinha a placenta colada, em vez de me fazerem raspagem, tiraram-me tudo à mão. Aí tive umas dores tremendas.
Menos que um pacote de arroz
No dia seguinte fui vê-la de cadeira de rodas. E depois começou a corrida ao leite. Tinha enfermeiras a espremerem-me o peito para congelarem o leite e guardarem, para lhe darem meses depois quando ela saísse da incubadora. É tudo muito organizado. Nasceu com 33cm e pesava 985g, menos que um pacote de arroz. Nunca lhe conseguia ver a cara, porque ela tinha uma touquinha mínima, máscara e tubos. A primeira vez nem lhe pude tocar. Cantava-lhe baixinho.
Estive ainda uma semana internada. O Pedro chegou no fim dessa semana e viu-a pela primeira vez. Foi muito emocionante. Cada um estendeu um braço por dentro da incubadora e tocámos-lhe ao mesmo tempo.
Uma das enfermeiras fez um bloquinho com palavras em inglês e japonês, e ia acrescentando palavras. Um dia íamos morrendo a rir, porque no meio dos papelinhos a dizer ‘chichi’ ou ‘precisa de arrotar’ havia um que dizia ‘merda’ (risos). Lá explicámos que a palavra não era exatamente aquela…
Eles tratam as pessoas pelos apelidos: eu usava os de solteira, Castelão Oliveira, por isso a Madalena era sempre a ‘Casterau Oriveira baby’ (risos). O pai não é tido nem achado para o nome. Eu bem insistia que ela se chamava Madalena, mas durante imenso tempo ficou Casterau-Oriveira ‘porque podíamos ainda mudar de ideias’ (risos). Só muito depois passaram a usar o ‘Madarena’.
Ficou três meses no hospital, até se completarem os 9 meses da praxe. Esteve sempre bem, sempre a ganhar peso.
Quando tive alta, todos os dias ia ao hospital. E ajudou-me imenso não ser lamechas. Por exemplo, chegar a casa sem o bebê nos braços não foi um drama, porque eu sabia que ela estava bem. No hospital, perguntei se podia pôr em prática o ‘método mãe canguru’, em que as mães pegam nos bebês prematuros sem roupa, para eles terem o contacto com a pele da mãe. Via-se de tudo, médicos a fazerem cirurgias ali mesmo, bebês que não recuperavam, bebês abandonados pelos pais, era um choque.
Fomos progredindo, conquista a conquista, até que a Madalena, um bebê saudável, saiu do hospital em novembro. O que aprendi com tudo isto: percebi que sou muito mais forte do que pensava, e para nós dois, como casal, foi um desafio enorme.
Fonte da notícia: Activa (notícia original publicada em 27/12/16)