O surgimento, em dezembro de 2019, na província de Wuhan, na China, de um novo tipo de vírus da família coronavírus identificado como SARS-CoV-2 (abreviação do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome – Related Coronavirus 2), causando uma doença grave chamada de COVID-19 (abreviação de COronaVIrus Disease-2019), causou uma pandemia com sérias conseqüências em todo o mundo (1,2).
De modo geral as infecções que ocorrem durante a gravidez causam muita preocupação pois tem o potencial de causar complicações não apenas na mãe, mas também em seu bebê, por meio do que se denomina de transmissão vertical. Esta é definida pela passagem de um agente infeccioso (vírus, bactéria ou protozoário) do sangue da mãe portadora de uma doença infecciosa para o sangue do seu bebê ainda dentro do útero, através da placenta, causando doença de graus variados no feto. Existem exemplos bem documentados de doenças com transmissão vertical causadas por vírus (zika, rubéola, citomegalovírus), bactérias (sífilis) e protozoários (toxoplasmose). No entanto, as consequências da infecção pelo SARS-CoV-2 durante a gravidez e a possibilidade de transmissão de mãe para filho por via transplacentária ainda não foram bem documentadas e até o momento permanecem inconclusivas (3). As dúvidas persistem apesar deste assunto ser extensamente estudado por médicos e cientistas de todo o mundo desde o início deste ano. Em 2020 foram publicadas cerca de 41 recomendações no Brasil e no exterior, com base na literatura médica disponível em relação aos cuidados da COVID-19 na gestação e em recém-nascidos. Estas recomendações são baseadas em cerca de 96 artigos científicos publicados em revistas médicas sobre a infecção com o SARS-CoV-2 na gestação e durante o primeiro mês de vida (4).
Apesar da intensa pesquisa realizada desde o surgimento desta nova doença, algumas perguntas ainda permanecem sem respostas:
● Existe passagem através da placenta do SARS-CoV-2 da mãe para o feto?
● Se esta passagem existe, com que frequência ela ocorre?
● O bebê desenvolve doença de maior gravidade se ocorrer a transmissão placentária?
● Existe relação entre a fase da gestação em que a mãe desenvolve a doença (1o, 2o ou 3o trimestre) e a frequência ou gravidade da infecção de seu filho?
Para responder a estas perguntas seria necessário demonstrar a presença do vírus no bebê no momento do nascimento, seja através do seu isolamento no sangue do cordão umbilical ou em outro tecido, e isto ainda não foi relatado até o momento (5). Surgiram relatos na China de suspeita de infecção vertical com base em altos níveis de anticorpos do tipo IgG e IgM no sangue do recém-nascido após o nascimento, mas sem isolamento viral (6,7). Os anticorpos parecem começar a ser produzidos cerca de duas semanas após o início da infecção. Como os anticorpos da mãe do tipo IgG conseguem passar para o sangue do feto através da placenta, a sua identificação no sangue no recém-nascido após o nascimento pode representar apenas esta passagem transplacentária dos anticorpos maternos. Por outro lado, os anticorpos da classe IgM não conseguem chegar ao feto pela placenta e sua presença no sangue de cordão umbilical ou logo após o nascimento poderia indicar transmissão vertical do SARS-CoV-2 ocorrida durante a gravidez semanas antes do nascimento e início da resposta imunológica do feto. Esta foi a conclusão de 2 estudos chineses que, através da identificação de anticorpos do tipo IgM no do cordão umbilical os autores concluíram que poderia se tratar de transmissão vertical. No entanto, um grande problema com essa técnica é a imprecisão relativa dos testes de diagnóstico atualmente disponíveis. Os testes para de anticorpos IgM anti-SARS-CoV-2 usados em estudos perinatais da China requerem uma melhor avaliação sobre a sua sensibilidade e especificidade, bem como reatividade cruzada com anticorpos IgM de outros agentes que não o SARS-CoV-2. Os testes utilizados na China tem, segundo o seu fabricante, uma sensibilidade 70,2% -88,2%, e uma especificidadede 96,2%-99%.Esses valores foram aferidos em apenas um estudo e publicados na China, não tendo sido reproduzidos em nenhum outro país ou laboratório ao redor do mundo.
Vários outros estudos tentaram identificar a transmissão vertical do SARS-CoV-2 através do isolamento do vírus na pele após o nascimento, por meio de swab de orofaringe, pele ou ainda por pesquisa do vírus nas fezes do recém-nascido (8). Estes estudos tem o grande problema da possível contaminação do recém-nascido após o nascimento, seja pelo contato com a mãe ou outros familiares infectados ou ainda pelo eventual contato com profissionais de saúde contaminados.
Outra forma de documentar a transmissão vertical seria através da análise das placentas de mães com COVID-19. No entanto, poucas amostras placentárias de mães infectadas com SARS-CoV-2 foram estudadas até o momento e nenhuma mostrou a presença do vírus através de estudos moleculares (9). Portanto, evidências mais definitivas são necessárias para o diagnóstico da transmissão vertical de uma mulher infectada com risco de infecção congênita. O uso rotineiro de estudos moleculares como a reação em cadeia da polimerase em tempo real (RT-PCR) coletada no nascimento a partir do sangue do cordão umbilical poderia ser usada para o isolamento viral que permitiria não apenas o aconselhamento dos pais, como também um melhor entendimento da morbidade perinatal relacionada à infecção fetal pelo SARS-CoV-2.
Referências
(1) Zhu N, Zhang D, Wang W, Li X, Yang B, Song J, et al. A Novel Coronavirus from Patients with Pneumonia in China, 2019. N Engl J Med. 2020:1–7. https://doi.org/10.1056/NEJMoa2001017.
(2) The Washington Times. World Health Organization declares COVID-19 outbreak pandemic. https://www.washingtontimes.com/news/2020/mar/11/world-health-organiz ation-declares-covid-19-outbre/ Accessed 06 May 2020. n.d.
(3) Society for Maternal Fetal Medicine. Coronavirus (COVID-19) and Pregnancy: What Maternal-Fetal Medicine Subspecialists Need to Know. April 11, 2020 [cited 2020 April 28]; Available from: https://s3.amazonaws.com/cdn.smfm.org/media/2322/COVID19- What_MFMs_need_to_know_revision_4-11-20_(final)_highlighted_changes._PDF.pd f
(4) Disponível em
https://redeneonatal.com.br/blog-rbpn/noticias/informacoes-covid19/
(5) Rasmussen SA, Smulian JC, Lednicky JA, Wen TS, Jamieson DJ. Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) and Pregnancy: What obstetricians need to know. Am J Obstet Gynecol. 2020 Feb 24
(6) Dong L, Tian J, He S, Zhu C, Wang J, Liu C, et al. Possible vertical transmission of SARS-CoV-2 from an infected mother to her newborn. JAMA. Published March 26, 2020. doi:10.1001/jama.2020.4621
(7) Zeng H, Xu C, Fan J, Tang Y, Deng Q, Zhang W, et al. Antibodies in infants born to mothers with COVID-19 pneumonia. JAMA. Published March 26, 2020. doi:10.1001/jama.2020. 4861
(8) Alzamora MC, Paredes T, Caceres D, Webb CM, Valdez LM, La Rosa M. Severe COVID-19 during Pregnancy and Possible Vertical Transmission. Am J Perinatol. 2020 2020 Apr 18. doi: 10.1055/s-0040-1710050. [Epub ahead of print]
(9) Lamouroux A, Attie-Bitach T, Martinovic J, Leruez-Ville M, Ville Y, Evidence for and against vertical transmission for SARS-CoV-2 (COVID-19), Am J Obstet Gynecol. ( 2020), doi: https://doi.org/10.1016/j.ajog.2020.04.039
Autor: Celso Moura Rebello – Médico da UTI Neonatal e pesquisador do Instituto Israelense de Ensino e Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein. Vice-Presidente do Departamento de Neonatologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo