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27.08.2020

O psicólogo na UTI Neonatal: uma janela para pensar esta experiência

Dia 27 de agosto é um dos meus dias preferidos do ano. É o dia em que eu comemoro umas das minhas escolhas mais potentes: ser psicóloga. E neste ano, além disso, ganhei um presentinho. Fui convidada para escrever um texto sobre o psicólogo na UTI neonatal, ou seja, juntar duas paixões, homenagear meus colegas de profissão e poder falar um pouquinho da minha história e desse campo de atuação do psicólogo que eu valorizo tanto. Vou começar contando uma historinha que todos os que foram meus alunos já conhecem. Ela tem dois capítulos: um quando eu tinha 12 anos e outro aos meus 22, no quarto ano do Curso de Psicologia da PUCRS.

No sexto ano do ensino fundamental conheci a mãe de uma colega e um dia, almoçando na casa dela, não me lembro por que motivo ela começou a nos contar sobre algo do seu trabalho. Ela era (é) psicóloga e trabalhava com psicoterapia de crianças. Ficou falando sobre as sessões de brinquedo livre, atendimento aos pais e as formas de interpretar os conteúdos que apareciam na brincadeira. Fiquei muito tempo pensando naquilo tudo, me enxergando naqueles cenários, e dali pra frente nunca mais tive um dia de dúvida. Eu seria psicóloga. Pois o tempo foi passando, a certeza da escolha certa se fortificando, a entrada no curso aconteceu e as primeiras aulas foram rolando. Depois vieram os estágios e a oportunidade de exercer a prática clínica com crianças e adolescentes se materializou. Mas ela apareceu de um jeito diferente, que eu não conhecia. Era dentro de um hospital. Eu pouco tinha aprendido sobre Psicologia Hospitalar na época. Era uma área nova, considerada uma especialidade do psicólogo há apenas dois anos, mas aquilo me fazia muito sentido e eu sempre penso que quando uma coisa nos faz muito sentido perdemos a noção do tamanho das barreiras e vamos desbravando sem medir esforços. E Assim foi. Comecei o estágio e tive um daqueles momentos mágicos que temos poucas vezes na vida: a certeza de que era aquilo que eu queria seguir fazendo. Mas aí vem a parte mais interessante dessa história. Meu estágio era em um hospital universitário e nos rounds clínicos trocávamos experiências com muitos colegas da equipe multiprofissional, acadêmicos, professores, técnicos. Eis que um dia, em um round de uma UTI pediátrica, eu contribuí com a discussão oferecendo a minha percepção no atendimento de um bebê em estado crítico e sua mãe. Na saída, já fora da UTI, um acadêmico de outro curso me pára e pergunta: “te vi falando no round... nesses atendimentos de bebês de UTI com quem vocês conversam, com um tubo?”. A pergunta tinha ar de deboche. O professor estava do lado dele e eu não me senti com experiência suficiente para bancar qualquer discussão. Ele saiu e eu não soube ou não consegui responder na hora. Fiquei engasgada, sem palavras e nunca mais esqueci.

Essa história me impacta até hoje e sempre penso o papel tão importante que ela teve na minha trajetória. O potencial da intervenção psicológica numa UTI me parecia tão grande... e ainda maior quanto mais pequeno fosse o meu paciente e quanto menos capacidade de se comunicar com o mundo ele tivesse. Crianças não tem a mesma capacidade que um adulto para expressarem e processarem suas emoções. Ainda estão aprendendo tudo isso. Sentem o mesmo que qualquer um de nós, mas têm menos condições de expressão verbal. Bebês menos ainda. Logo o papel do psicólogo enquanto interlocutor da vida psíquica de um bebê para seus pais e para uma equipe de saúde é fundamental. Eu não estava “conversando com um tubo”. Eu estava prestando assistência a um sujeito e sua família. Tinham tantas coisas sendo ditas naqueles encontros, tanto a ser falado.

Necessitar de cuidados intensivos desde o nascimento é algo que invade uma cadeia de associações dos pais sobre o que é ser pais, sobre os significados da maternidade e da paternidade. Tudo parece não fazer mais muito sentido. Não ter o bebê consigo, no colo, mamando, trocando fraldas, pele a pele, escolhendo suas primeiras roupinhas, apresentando ele para toda a família. Estes eram os sonhos, a espera, o desejo. Por isso, auxiliar os pais na significação e elaboração destas perdas é essencial.

Muitas UTIs contam com equipes de enfermagem, nutrição, neonatologia, fisioterapia, fonoaudiologia “quase psicólogos”. O termo obviamente é uma brincadeira, mas se refere a pessoas altamente empáticas e sensíveis e com uma grande capacidade de se colocar no lugar do outro e se aproximar muito da dor, mas também da alegria das conquistas. Nestes momentos, encontrar uma equipe destas vale ouro. É a possibilidade de respeitar protocolos e rotinas sem se deixar engessar por eles. Entretanto, vale salientar que uma equipe humanizada e preocupada com o bem-estar dos pacientes e suas famílias não é tudo e não substitui de forma alguma a intervenção psicológica nestes contextos.

O psicólogo se torna uma presença constante, em meio a equipes que vão rotando e assim se oferece como ponto de referência para os pais na unidade. Além disso, auxilia a comunicação entre a equipe e as famílias, que por vezes é obstruída pelas más notícias, sobrecarga, dificuldades de compreensão e pelo peso emocional do momento. Mas uma das nossas intervenções fundamentais é auxiliar os pais a olharem e se comunicarem com os bebês. Trago aqui um olhar que busque conhecer, agregar, se apropriar. Não é fácil olhar para um bebê por vezes tão pequeno ou para um bebê que precise de tantos recursos. Também não é simples estabelecer uma via de comunicação com eles, pois todas as formas imaginadas em algumas situações não são possíveis. Ele me ouve? Ele está me enxergando? Será que ele sabe quem eu sou? Será que ele reconhece meu colo? Eu vou poder amamentar? E colocar ele no meu peito? Ele vai lembrar disso? O que tu acha que ele está entendendo? São muitas as perguntas e a ausência de respostas precisas é grande.

Encontrar esses caminhos, essas brechas no desenvolvimento que por vezes inicia tão diferente do esperado só será possível através da nossa incrível capacidade de pensar sobre o que está a nossa volta e a expansão desta capacidade é o eixo central da atuação do psicólogo neste contexto. Parabéns a todos os colegas psicólogos pelo nosso dia! E muito obrigada a estas equipes de saúde que nos acolheram e dividem as suas práticas diárias assumindo mais este desafio: olhar a singularidade de cada bebê e de sua família.

por Prof. Dra. Mariana Calesso Moreira, professora adjunta - Departamento de Psicologia da UFCSPA

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