Para economista, programas que atendam o público até os 6 anos de idade têm efeitos de longo prazo sobre aprendizado, produtividade, emprego e renda.
Investir na primeira infância - da gestação até os 6 anos de idade -, é a solução para diversos problemas da sociedade brasileira, inclusive os econômicos. A tese é do economista Naercio Menezes Filho, professor do Insper e estudioso do assunto há vários anos.
Segundo Menezes, estudos internacionais conduzidos pelo economista James Heckman, vencedor do Nobel de Economia de 2000, apontam que projetos bem-sucedidos de apoio à crianças vulneráveis desde o nascimento proporcionam no longo prazo retorno econômico. Para cada dólar investido na primeira infância, o ganho pode chegar a US$ 7.
A atenção mais intensiva a esse público tende a melhorar a perspectiva de vida, o que consequentemente faz com que as crianças bem atendidas se tornem adultos mais produtivos, além de reduzir a propensão a problemas de saúde mental e até mesmo física.
O economista explica que o tema envolve melhorias em diversas áreas, do saneamento básico a educação infantil e visitações de agentes públicos às famílias. Ele defende a ideia de que o debate não deve se mover para encontrar um número mágico de investimento. O ideal, segundo Menezes, é que, primeiro, os governantes reflitam sobre quais projetos precisam ser executados para depois saberem quanto cada ação vai custar e convencer a sociedade a redirecionar os recursos.
A partir deste ano, agosto passa a ser, oficialmente, o Mês da Primeira Infância, após a aprovação de lei no Congresso Nacional, sancionada em julho pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Embora tenha caráter mais simbólico, a iniciativa que será caracterizada pela cor verde busca reproduzir o sucesso de outras campanhas de conscientização, como o Outubro Rosa e o Novembro Azul, e soma-se ao marco regulatório de 2016, que estabeleceu ações práticas para o poder público, mas ainda patina na execução tanto em nível federal quando estadual e municipal.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: Existe um movimento crescente no Brasil e no mundo que tenta mobilizar os governantes a considerarem mais políticas públicas diretas para a primeira infância. Isso pode trazer benefícios econômicos para um país?
Naercio Menezes Filho: Com certeza. A hora que as pessoas realmente entenderem isso, vão colocar mais importância na primeira infância. Há vários problemas na sociedade que ficariam mais fáceis de solucionar. Os políticos demoram para entender porque estão muito preocupados com eles mesmos, em primeiro lugar. Mas, quando começa a ter pressão da sociedade, começam a ver que, se as crianças receberem condições ideais desde o nascimento, a tendência é que todos se beneficiem no longo prazo.
Valor: Existem dados concretos que apontem essa direção?
Menezes: A principal referência são os estudos do James Heckman. Um deles, com observações em cima do chamado Perry School Project, apontou um retorno econômico de 6% a 10% ao ano entre as crianças que participaram de um programa de pré-escola adequado [em comparação ao grupo de participantes do estudo que não teve]. Essa taxa de retorno foi calculada comparando os custos do programa com os retornos em termos de educação, saúde, salários e outros indicadores. No longo prazo, acumulando esse retorno ano a ano e calculando o benefício final total, resulta em sete vezes o valor investido. Ou seja, US$ 7 para cada US$ 1 dólar investido. Isso porque há vários impactos sobre produtividade, pagamento de impostos e assim por diante, incluindo menos gastos que o governo precisará ter em outras áreas.
Valor: Dá para dizer que cada real que o Brasil investir vai receber um retorno econômico de 10% ao ano?
Menezes: Não é tão simples assim, pois cada projeto gera uma taxa de retorno própria, dependendo da sua qualidade. Os estudos do Heckman são altamente intensivos e multissetoriais, e com crianças de famílias muito vulneráveis. Quando se olha para um país inteiro é complicado achar esse número preciso, porque estamos falando de investimentos que vêm de todas as partes. Creche, educação infantil, estratégias de saúde da família e inclusive programas de transferência de renda que impactam as crianças.
Crianças que nascem em famílias da classe E, D e C, crescem em um ambiente deteriorado. E aí vão para a escola e não conseguem aprender”.
Valor: Parece óbvio que uma criança que teve alimentação, educação e cuidados de saúde adequados desde o início da vida tende a se tornar um adulto mais produtivo. Por que, então, esse debate está crescendo só agora no Brasil?
Menezes: O Brasil avançou muito nos últimos dez anos em relação ao tema. No começo do século ainda não se falava muito de primeira infância. Mas a partir dos anos 2000 economistas, baseados nos estudos do Heckman, começaram a olhar mais e se aliaram a pesquisadores de outras áreas como neurociência, educação e saúde que já apontavam essa importância.
Valor: A neurociência avançou bastante na década de 1990...
Menezes: Exatamente. Estudos de neurociência passaram a mostrar que o desenvolvimento cerebral é muito rápido na primeira infância, que o cérebro vai se moldando a partir das interações que a pessoa tem na vida. Não é uma coisa só genética. E aí mais pesquisadores começaram a prestar atenção. Entidades do terceiro setor começaram a promover o tema e disseminar a importância da primeira infância. Mas é uma coisa que ganhou mais força de uns dez anos para cá, eu diria.
Valor: É possível estimar quanto o Brasil precisaria investir em políticas públicas para a primeira infância para obter esses retornos sinalizados pelos estudos de Heckman?
Menezes: Acho que não há necessidade de definir um número. No momento que você começa a querer definir um número, todo o debate se volta para isso, toda a barganha vai para uma ideia de “aumentar esse investimento para 3% ou 6% do PIB”, por exemplo. Isso não é benéfico, na verdade.
Valor: Não seria interessante ter recursos assegurados para fazer os investimentos necessários?
Menezes: Acredito que o foco tem que ir, primeiramente, para a elaboração de políticas que funcionem. Saber o que precisa fazer antes de saber quanto vai gastar. Esse deve ser o ponto de partida. Concluir o que precisamos fazer para dar a todas as crianças oportunidade de se desenvolver plenamente, que possam entrar na escola, aprender e ter habilidades socioemocionais, ter saúde mental boa, entrar no mercado de trabalho no futuro, ganhar dinheiro e assim por diante. Quanto custam essas políticas? Não sabemos ainda. O risco é acabar gastando mais sem obter resultados. É melhor, primeiro, incentivar a definição das políticas, depois ver o quanto vão custar e, em seguida, tentar convencer a sociedade a financiá-las.
Valor: Por que não vemos muitos políticos, principalmente candidatos a cargos do Executivo, falando dessa importância da primeira infância?
Menezes: Acredito que seja um processo. Antigamente, quase não se falava de educação também. Saúde sempre foi um tema mais falado porque é uma coisa muito visível. Se a pessoa está morrendo, isso chama atenção, aparece na televisão e o candidato sempre teve que ter uma proposta para lidar com isso. Só mais recentemente que a sociedade começou a se preocupar se as crianças estavam todas na escola e aí os políticos começaram a elaborar propostas educacionais. Essas questões da primeira infância não estavam tão claras. A preocupação era se a criança nasceu bem, se estava no peso ideal. E, se estava tudo certo, a estratégia era deixar ela quietinha e com quatro ou cinco anos matriculava na pré-escola, quando começavam a detectar os problemas.
Valor: A atenção dos próprios pais com os filhos já aumentou, não?
Menezes: Sim. Agora, as pessoas começaram a notar coisas do tipo: espera aí, ela não está subnutrida, mas está demorando muito para andar ou para falar as primeiras palavras. O assunto já começa a aparecer mais, reportagens estão sendo feitas e isso vai chegar nos planos de governo. O avanço vem em ondas.
Valor: Uma lei aprovada este ano transforma agosto, oficialmente, no Mês da Primeira Infância. A iniciativa é válida do ponto de vista prático?
Menezes: É mais simbólico, mas tudo que vier para ajudar a despertar a atenção das pessoas é válido. Veja os exemplos das campanhas de vacinação e os resultados que já tiveram. Outubro Rosa também levantando a questão do câncer de mama e o Novembro Azul com o câncer de próstata. As pessoas vão se conscientizando. Como economista, inclusive, diria que o custo é pequeno em relação aos ganhos que podem vir.
Valor: Considerando que o Brasil é um país com tantos problemas ainda mal resolvidos, inclusive com alto analfabetismo funcional em adolescentes e adultos, o senhor acha viável abrir mais essa frente que demandará quantidade razoável de recursos públicos?
Menezes: Se não resolvermos o problema da primeira infância, não conseguiremos solucionar outros. Veja, é muito difícil resolver o problema da educação se você não resolve o da primeira infância, porque a criança vai chegar na escola sem conseguir se concentrar, sem fazer a lição de casa, e aí não aprende mesmo. Consequentemente, começará a ter problemas de saúde mental. Nesse horizonte, depois impacta na produtividade do país. Não vai ter gente capacitada se formando no ensino médio. A primeira infância é o meio necessário para resolver esses problemas. Ficará tudo mais fácil.
Valor: O senhor mencionou a produtividade, uma questão frequentemente apontada como causa do baixo crescimento econômico do Brasil. Priorizar a primeira infância nas políticas públicas pode solucionar esse problema?
Menezes: Sim. Precisamos ter pessoas bem qualificadas. E só teremos pessoas qualificadas se o aprendizado começar desde o início, e não só lá no ensino fundamental e no médio. Isso vale especialmente para as famílias mais pobres. Se olharmos para as crianças que nascem em famílias da classe E, D e C, elas crescem em um ambiente muito deteriorado ainda. Metade não tem saneamento básico e as casas costumam ser lotadas. E aí essas crianças vão para a escola e não conseguem aprender. Depois vemos que 25% dos jovens são nem-nem (nem trabalham e nem estudam). Na hora que mais pessoas fizerem a conexão entre as diferentes fases do ciclo de vida, entenderão que para o país ter crescimento é preciso investir em pessoas. As empresas vão entender, os Estados e as prefeituras também.
Valor: Qual é o desenho eficaz de políticas públicas para a primeira infância?
Menezes: O ideal é o desenho de políticas intersetoriais. Por exemplo, o gestor que quer atuar na primeira infância precisa ter em mente quatro coisas - algumas de responsabilidade municipal e outras do Estado e da União. O primeiro é ter saneamento básico. A casa que essa criança vive tem que ter água e esgoto, senão já fica difícil. Depois, a família precisa receber transferência de renda, tipo o programa Bolsa Família, com valores elevados para quem tem criança. Fora isso, tem que haver um agente visitador, que é o que envolve os programas de estratégia de saúde familiar como o Criança Feliz [nacional], que já tem suas vertentes em vários Estados e cidades. Também é fundamental ter creches de qualidade. É importante ter todos esses elementos juntos e aí fica claro como o desafio não é pequeno. Sem falar que muitas entidades também já apontam a necessidade de haver espaços públicos seguros para as crianças brincarem e receberem estímulos importantes para a formação socioemocional.
Valor: Parece exigir um enorme esforço público em um país onde até pouco tempo uma parcela importante dos eleitores chamava o Bolsa Família de “bolsa esmola”. É possível convencer essa sociedade?
Menezes: Sim. Já é praticamente um consenso. O Bolsa Família é um dos programas mais bem avaliados e os estudos não encontraram evidências de que ele aumenta o número de filhos por família ou reduz a demanda de trabalho das mães, como a percepção errada dessas pessoas supunha. Tanto é que o governo Bolsonaro mudou o nome para Auxílio Emergencial, mas aumentou a ajuda para as famílias mais vulneráveis. E fez muito bem, por sinal, sem a resistência dos seus eleitores. Além disso, quando se fala de criança, todo mundo vê que é importante.
Fonte: Econômico Valor