Por Adriana Dias Lopes | Fotos Fabiano Accorsi
"No dia em que completou 5 meses de vida, Alice foi levada às pressas para o pronto-socorro. Além de apresentar febre alta, a menina respirava com muita dificuldade. Da emergência, ela passou à unidade de terapia intensiva (UTI). No dia seguinte, estava entubada. Um mês depois, os médicos a submeteram a uma traqueostomia. No domingo retrasado, Alice completou 8 anos.
Nos sete anos e meio de internação de Alice, Rosely se divorciou, afastou-se dos amigos e só ficou longe da filha por dois dias em duas ocasiões |
O aniversário foi comemorado com bolo, presentes eParabéns para Você. Entre os convidados, além de alguns parentes, havia médicos e enfermeiros – todos da equipe do hospital para onde Alice foi levada ainda bebê e de onde jamais saiu. Vítima de uma doença muscular, a garota perdeu todos os movimentos do corpo. Atualmente presa a um leito da unidade de terapia semi-intensiva, comunica-se apenas com o olhar. Ninguém entende melhor o que os olhos de Alice querem dizer do que a mãe, Rosely Prazeres de Maria – e é evidente a calma da menina quando ela está por perto. Aos 40 anos, Rosely vive em função da filha. Ao longo dos últimos oito anos, separou-se do marido, reduziu o ritmo de trabalho, afastou-se dos amigos. Em todo esse tempo, não teve um único namorado. Ficou longe de Alice por, no máximo, dois dias, em apenas duas ocasiões. Numa delas, ganhou uma viagem da empresa em que trabalha. "Foi um desastre. Morri de culpa", diz Rosely. "Chorei o tempo todo e telefonei para o hospital dez vezes por dia, sem exagero." Os afastamentos, se depender dela, nunca mais se repetirão.
Rosely pertence a um universo invisível para quem está só de passagem por um hospital – o das mães de UTI. São aquelas mulheres que saem pela porta dos fundos das maternidades, sem o filho recém-nascido nos braços. Ou aquelas que, como Rosely, se vêem obrigadas a devolver suas crianças aos cuidados da medicina. De uma hora para outra, elas são arrancadas de seu cotidiano familiar. Planos são interrompidos. A vida é suspensa pelas ameaças permanentes que pairam sobre seus filhos. "Não bastasse toda essa situação, ainda convivem com a culpa. Inconscientemente, responsabilizam-se pelo fato de o filho não ter nascido saudável", diz a psicóloga Daniela de Almeida Andretto, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. "Com isso, isolam-se do mundo e, em muitos casos, até do marido." Entre as mães de UTI, o índice de divórcios é altíssimo. Chega a 30%, quando a criança fica internada até seis meses, e a 50%, quando a hospitalização chega a um ano. Acima desse período, 70% delas enfrentam a separação.
Rosely pertence a um universo invisível para quem está só de passagem por um hospital – o das mães de UTI. São aquelas mulheres que saem pela porta dos fundos das maternidades, sem o filho recém-nascido nos braços. Ou aquelas que, como Rosely, se vêem obrigadas a devolver suas crianças aos cuidados da medicina. De uma hora para outra, elas são arrancadas de seu cotidiano familiar. Planos são interrompidos. A vida é suspensa pelas ameaças permanentes que pairam sobre seus filhos. "Não bastasse toda essa situação, ainda convivem com a culpa. Inconscientemente, responsabilizam-se pelo fato de o filho não ter nascido saudável", diz a psicóloga Daniela de Almeida Andretto, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. "Com isso, isolam-se do mundo e, em muitos casos, até do marido." Entre as mães de UTI, o índice de divórcios é altíssimo. Chega a 30%, quando a criança fica internada até seis meses, e a 50%, quando a hospitalização chega a um ano. Acima desse período, 70% delas enfrentam a separação.
Isabela não desgrudou de João nos sete meses em que ele esteve no hospital: "Eu me metia no trabalho de todo mundo". O menino hoje está com 9 meses e não corre mais risco de vida |
Até bem pouco tempo atrás, a presença constante dessas mães nas UTIs seria inimaginável. Elas só podiam ficar em companhia dos filhos quinze minutos, três vezes por dia. "Como vários estudos vieram a comprovar que o contato com as mães faz bem às crianças, os hospitais passaram a incentivar a entrada delas nas unidades de terapia intensiva", diz o neuropediatra José Salomão Schwartzman. Crianças que passam uma hora por dia em contato com a mãe reagem com mais serenidade às intervenções médicas. Durante um exame, por exemplo, elas choram 80% menos e expressam 20% menos dor. Nessas situações, o risco de parada cardiorrespiratória durante o procedimento é quatro vezes menor. "Além disso, com a aproximação entre mãe e filho, a produção de leite materno aumenta, podendo até dobrar", diz a neonatologista Miriam Ricca, do Hospital e Maternidade São Luiz, na capital paulista. Diante de todos esses benefícios, nos últimos cinco anos, muitos hospitais não só acabaram com o limite de tempo para a visita materna como investiram numa infra-estrutura especial para as mães – salas de descanso, com televisão e banheiro privativo. Alguns já permitem, inclusive, que elas durmam em companhia das crianças.
Uma das lembranças mais dolorosas para a terapeuta corporal Maria Julia Miele, de 40 anos, é a de não ter podido estar o tempo todo ao lado da filha Sofia, durante o período de um ano e três meses em que a menina esteve internada em UTIs de alto risco. "A hora da visita era um horror", lembra Maria Julia. "Enfrentava uma fila de mães, que eram chamadas uma a uma. Quando meu nome era chamado por último, eu já sabia: minha menina não estava bem." Sofia nasceu com um problema cardíaco. Quando Maria Julia foi visitar a menina pela primeira vez na UTI, um dia após o parto, entrou assustada. Não conseguia lembrar do rosto da filha. Depois do nascimento, ela havia tido poucos segundos para conhecer Sofia – o suficiente apenas para dar um beijo na recém-nascida.
"Passei pela minha filhinha sem reconhecê-la. Quando me aproximei da segunda incubadora, ouvi da enfermeira que Sofia
estava na primeira", conta Maria Julia. A menina morreu com 1 ano e 3 meses, em julho de 2002. Maria Julia acompanhou cada minuto da batalha de sua filha pela sobrevivência, incluindo transferências para dois hospitais e uma cirurgia de dez horas de duração. "Ao longo de todo esse tempo, vivi como se tivesse perdido o chão", diz. "Meu tormento era nunca ter certeza de que estava fazendo tudo que podia por ela." Autora do livro Mãe de UTI, Maria Julia recentemente fundou a ONG Instituto Abrace, de apoio às mães de filhos hospitalizados.
estava na primeira", conta Maria Julia. A menina morreu com 1 ano e 3 meses, em julho de 2002. Maria Julia acompanhou cada minuto da batalha de sua filha pela sobrevivência, incluindo transferências para dois hospitais e uma cirurgia de dez horas de duração. "Ao longo de todo esse tempo, vivi como se tivesse perdido o chão", diz. "Meu tormento era nunca ter certeza de que estava fazendo tudo que podia por ela." Autora do livro Mãe de UTI, Maria Julia recentemente fundou a ONG Instituto Abrace, de apoio às mães de filhos hospitalizados.
Ter uma criança numa UTI é morrer um pouco. Dependendo da gravidade do problema, morre-se mais ou menos. "O despreparo para lidar com essa situação é sempre total", diz a psicóloga Daniela de Almeida Andretto. Segundo um levantamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, 44% das mães de prematuros hospitalizados sofrem de ansiedade e depressão – uma incidência duas vezes maior do que a registrada na população em geral. Não há dúvida de que a possibilidade de permanecer ao lado do filho, sem hora marcada para ir embora, ajuda a amenizar o sofrimento. Porque também é a única maneira de essas mulheres poderem exercer a sua maternidade. "Eu não desgrudava do meu filho, me metia no trabalho de todo mundo, queria resolver tudo", diz a executiva Isabela Massola Mendes, de 34 anos, mãe de João Pedro, hoje com 9 meses. O menino nasceu com uma anomalia no coração que lhe prejudicou o desenvolvimento da traquéia. Por isso, teve de ficar sete meses na UTI. Apesar de ter recebido alta, João até agora requer cuidados especiais. Para respirar, precisa da ajuda do tubo de traqueostomia e, em breve, será operado pela sexta vez. "Consegui sobreviver a todos esses meses de internação porque, desde o começo, desejava que João passasse o dia bem.
Era como se eu estivesse numa grande batalha diária", diz Isabela. Só depois que o menino foi declarado fora de perigo, Isabela conseguiu chorar. No pulso esquerdo, ela traz tatuado o desenho (miúdo) das cinco cicatrizes cirúrgicas que o pequeno João traz no peito.
Ter um filho numa UTI é viver um pouco mais. A alma da maioria dessas mulheres será indelevelmente marcada por esse drama. Hoje, Henrique está com 5 anos e é um menino saudável. Mas, ao nascer, ele contraiu pneumonia e ficou numa UTI por onze dias. "No começo, eu ficava muito dividida por causa de minha filha mais velha, que estava com 2 anos", lembra Andréa Crevatin, de 41 anos. "Ia e voltava da maternidade para casa, de casa para a maternidade... Até que resolvi parar e me dedicar integralmente a Henrique." Depois do susto, com o filho curado, Andréa abriu mão de 20% do salário como funcionária pública para trabalhar menos e ficar mais tempo com as crianças. "Henrique me mostrou o que de fato é precioso na minha vida. Ele me trouxe o chão." É aquele mesmo chão perdido por Maria Julia. E o que Isabela e Rosely tentam pavimentar a cada dia.""
Fonte: http://veja.abril.com.br/270607/p_102.shtml