Notícias

19.09.2021

A importância do leite materno para o prematuro

Quero convidar vocês para voltar ao tempo em que o prematuro estava no ambiente intrauterino, recebendo todas as suas necessidades nutricionais diretamente do sangue materno, via placenta. Não havia necessidade de manter a temperatura, nem de respirar sozinho. Seus intestinos estavam preenchidos por líquido amniótico, colonizado pelo microbioma materno e possibilitando o desenvolvimento das células intestinais. Durante o período gestacional que vai das 24 às 30 semanas, o feto dobra de peso, o que ocorre novamente no período das 30 até as 36 semanas. Para que esse período extraordinário e sem precedentes de crescimento possa ocorrer, as necessidades nutricionais do feto são enormes.

Quando nascem prematuros, esses bebês perdem, entre outras coisas, o período de acúmulo de nutrientes indispensável para esse período, como ferro, zinco, cálcio e vitaminas que costumam ocorrer no terceiro trimestre. Também não apresentam reservas de gordura subcutânea e nem de glicogênio. A partir de agora, seus gastos energéticos são aumentados, pois precisam regular sua temperatura corporal, respirar sozinho e metabolizar o alimento via intestinal. Esse intestino é ainda imaturo e as peculiaridades inerentes à prematuridade acabam proporcionando uma colonização alterada do seu microbioma. Os principais fatores de risco para falha nutricional em prematuros incluem menor idade gestacional, ser pequeno para idade gestacional, apresentar hemorragia cerebral, leucomálacia, infecções e o menor nível socioeconômico.

Um recém-nascido que nasce com muito baixo peso (abaixo de 1.500g) de nascimento, configura uma urgência nutricional, pois não apresenta reservas protéicas e inicia um processo de catabolismo em apenas algumas horas de vida, se não receberem aporte protéico adequado. Além disso, a coordenação da respiração, sucção e deglutição só começam a ocorrer em torno de 34 semanas de idade gestacional, o que implica a necessidade de ofertar dieta enteral através de sondas de alimentação, sem possibilidade de receberem dieta via oral.

Para termos uma ideia da magnitude dessas demandas, o esporte que mais exige metabolicamente do ser-humano é a participação no Tour de France, uma prova ciclística com 21 etapas, 23 dias de duração e que percorre 3.200km. Durante a prova, estima-se que as necessidades calóricas dos atletas sejam de cerca de 7.000 kcal por dia ou cerca de 100 kcal/kg/dia para um atleta adulto, de cerca de 70 kg. E o nosso prematuro extremo na UTI? O prematuro chega na UTI com estoques baixos e demandas muito elevadas. Ele vai precisar ainda mais calorias do que o nosso atleta do tour de France, cerca de 20 a 30% a mais, ou 120 a 130 kcal/kg/d para manter suas funções e crescer. Mais da metade desses nutrientes vai para o cérebro.

O cérebro humano DOBRA de tamanho no primeiro ano de vida e a qualidade dos nutrientes oferecidos para o crescimento cerebral são críticos nesse processo. As sequelas associadas ao SNC são altamente significativas em prematuros e o cérebro consome a maior parte dos recursos nutricionais. A prematuridade é responsável por 45% dos casos de paralisia cerebral; 23% das perdas auditivas; 37% das perdas visuais e 27% das sequelas cognitivas.

Os prematuros apresentam uma elevada vulnerabilidade, que pode prejudicar a sua capacidade de plasticidade neuronal no cérebro em desenvolvimento. Por isso, é melhor concentrar esforços em manter a trajetória de crescimento do SNC do que permitir que haja um processo de restrição que vai precisar se compensado depois. O acréscimo de massa magra, ou crescimento linear, é um marcador do crescimento cerebral. Manter o crescimento na UTI Neonatal é um grande desafio.

Existem nutrientes que são importantes não apenas na quantidade, mas no momento ou “janela de oportunidade” em que são oferecidos. Na UTI neonatal, essa janela parece estar aberta no período entre 22 e 44 semanas, quando devemos oferecer não apenas a quantidade correta, mas a melhor qualidade disponível. Permitir que ocorra um déficit nutricional nesse período pode causar alterações anatômicas e funcionais diretas sobre o SNC. As áreas do cérebro mais vulneráveis a desnutrição nesse período são o hipocampo (ligado a processos de memória e aprendizado), o cerebelo (equilíbrio e coordenação motora) e a mielinização (velocidade de processamento neuronal). Embora não ofereça quantidades suficientes de macronutrientes e micronutrientes para, isoladamente, manter o crescimento de prematuros, apenas o leite materno oferece os componentes associados a melhora do desenvolvimento do SNC e deve ser promovido de forma incansável durante a nossa janela de oportunidade.

A oferta de um melhor cuidado nutricional no cuidado de prematuros extremos tem o potencial de melhor profundamente suas vidas a longo prazo. A prematuridade é a principal causa de morte em crianças com menos de 5 anos, a maioria delas seriam preveníveis. Com a evolução do cuidado intensivo neonatal que ocorreu nos últimos anos, temos cada vez mais bebês mais prematuros sobrevivendo, porém precisamos focar na qualidade dessa vida. A OMS estima que o número de prematuros tem aumentado globalmente, variando de 5 a 18%, dependendo do país e que cerca de 15 milhões de bebês nascem prematuros no mundo. A prematuridade é um problema de saúde pública global, que traz consequências duradouras para a família e para a sociedade.

Quando o cuidado neonatal é diferenciado, há melhora nas complicações associadas a prematuridade, com melhor qualidade de vida e de saúde a longo prazo. O cuidado nutricional adequado é uma ferramenta central para promover a redução de complicações e a sobrevida de qualidade a longo prazo, impactando diretamente no prognóstico e tem o potencial de melhorar profundamente a saúde desses bebês que nasceram prematuros. O reconhecimento da importância e do impacto duradouro da nutrição tem ganhado importância cada vez maior com o desenvolvimento científico na área. O suporte nutricional do prematuro nos primeiros dias de vida é tão importante para a saúde a curto e longo prazo, que deveria receber a mesma importância que o suporte hemodinâmico e respiratório na UTI Neonatal.

A curto prazo, um suporte nutricional adequado implica possibilitar que o prematuro desenvolva sua capacidade de crescimento plenamente, além de proporcionar o desenvolvimento de processos fisiológicos e de órgãos que ainda estão em desenvolvimento. O suporte nutricional precoce, que proporcione uma taxa de crescimento adequada (18 a 20 g/kg/d), está correlacionado a um desfecho melhor em relação ao neurodesenvolvimento, quando comparado a tentar compensar um processo de desnutrição já instalado. A incidência de falha de crescimento é inversamente proporcional à idade gestacional e está associada a maior morbidade e piores desfechos clínicos a longo prazo. Os fatores de risco independentes, identificados pela literatura, para falha de crescimento incluem o tempo de suporte respiratório, o tempo de hospitalização, a DBP e a ECN. O suporte nutricional inadequado pode ser um fator de risco para complicações da prematuridade, mas também as complicações são fator de risco para a restrição de crescimento.

Por outro lado, todos os benefícios estão correlacionados. Possibilitar o suporte nutricional adequado, (especialmente as necessidades protéicas) para potencializar crescimento, proporcionar colonização saudável do microbioma intestinal são essenciais para promover a saúde intestinal e imunológica. Isso porque uma microbiota intestinal desequilibrada e um sistema imunológico imaturo desempenham papeis vitais no risco de infecção, aumentando a chance de ECN e de comprometer o crescimento. Ao comprometer o crescimento, o desenvolvimento cerebral também será afetado.

Pensando em todas essas particularidades, o prematuro de muito baixo peso de nascimento é considerado uma urgência nutricional, devendo iniciar com aporte de aminoácidos, lipídeos e dieta enteral trófica ainda nas primeiras horas de vida. O consumo de uma maior dose de aminoácidos na primeira semana de vida está associado a melhor crescimento linear aos 18 meses de idade corrigida. Por sua vez, o crescimento linear adequado, tem correlação direta com o melhor DNPM. Uma maior velocidade de crescimento durante a internação na UTI está associada a melhora das morbidades clínicas, redução na paralisia cerebral, melhor DNPM com 18 a 22 meses de idade corrigida. O ganho ponderal não deve ser nem muito rápido e nem muito lento.

Os impactos a longo prazo incluem não só os efeitos físicos, mas a melhora do desenvolvimento neuropsicomotor, do comportamento e da capacidade intelectual. Isso apresenta também um impacto positivo sobre a família e a sociedade como um todo. Os benefícios diretos sobre a saúde incluem redução de doenças crônicas como diabetes, hipertensão e obesidade. As consequências da prematuridade estendem-se muito além do período neonatal.

Devemos estar cientes de que a nutrição é um conceito muito mais amplo do que a simples oferta de nutrientes. Também precisamos lembrar que o crescimento é um marcador da oferta nutricional, mas não deve ser o principal desfecho perseguido. O leite materno é um líquido DINÂMICO e MULTIDIMENSIONAL, que contém nutrientes balanceados e personalizados para cada díade mãe-bebê. Possui elevada bioatividade e biodisponibilidade (fatores de crescimento, enzimas, oligossacarídeos do leite materno, anticorpos e células-tronco). Todos esses componentes estão mais concentrados ainda no leite da mãe dos prematuros, no período das primeiras 4 a 6 semanas de vida, independente da idade gestacional.

Apenas o leite materno da própria mãe oferece uma miríade de componentes biologicamente ativos que são protetores quando oferecidos de forma mais precoce possível. Ao contrário do que se pensava, não é um líquido estéril, contendo uma microbiota rica e diversificada, composta por bactérias que colonizam a pele materna e outras superfícies. Esses micróbios têm a capacidade de competir com patógenos indesejados, que causam processos de doença. Também oferecem lactobacilos e bifidobactérias, que são capazes de ativar a IgA no intestino do prematuro. As bifidobactérias estão envolvidas, entre outras coisas, no controle da inflamação, reduzindo a permeabilidade intestinal. A colonização do leite materno parece ocorrer pela via êntero- mamária, proporcionando a colonização intestinal dos prematuros com as bactérias que estariam presentes no intestino da própria mãe.

Os benefícios do leite materno para todas as crianças já são amplamente conhecidos, desde os estudos pioneiros iniciados pela coorte de Pelotas. Falando especificamente dos prematuros, esses benefícios parecem ser ainda mais importantes, devido à vulnerabilidade que a prematuridade impõe a essa população. O aleitamento materno de prematuros melhora a saúde cardiovascular de forma direta e indireta, é capaz de reduzir a retinopatia da prematuridade, a incidência de sepse e enterocolite necrosante, oferecendo a colonização intestinal de um microbioma com características mais saudáveis. Além disso, é capaz de promover benefícios a longo prazo, como melhorar o desempenho escolar, apresentar um melhor perfil nutricional e promover o vínculo com a família, tão prejudicado pela situação de estar em uma UTI. Todos esses benefícios são dose-dependente, ou seja: quanto maior a quantidade de leite materno o prematuro recebe, maiores são as chances de ele se beneficiar. Além disso, o fato de melhorar o desempenho escolar e oferecer maior qualidade de saúde, aumentam as chances de melhor colocação no mercado de trabalho e de melhor remuneração na vida adulta. Esses fatores estão intrinsecamente ligados à redução de desigualdades sociais.

Para termos uma ideia mais detalhada da importância da promoção do aleitamento materno na UTI, vamos observar com maior detalhe os benefícios que ele promove na saúde cardiovascular. Apenas por terem nascido prematuros, essas crianças apresentam maior chance de desenvolverem doenças cardiovasculares quando adultos jovens. Isso porque a prematuridade causa menor volume biventricular, redução das funções sistólica e diastólica e pressão arterial sistólica e diastólica mais elevadas. A prevenção da prematuridade é um fator importante para reduzir essas alterações, mas quando recebemos o paciente na UTI Neonatal, será que existe alguma coisa que possa ajudar a evitar ou até mesmo a reverter essas alterações? E se eu disser que sim? Estudos têm demonstrado que esses processos podem ser interrompidos pela exposição precoce ao leite materno.

Isso se dá de forma indireta (através da promoção da saúde, conforme comentado anteriormente) e também de forma direta, pela ação de componentes que estão presentes apenas no leite materno. Em primeiro lugar, possui fator de crescimento endotelial vascular, responsável direto pela modulação de vasculogênese e angiogênese, atuando para reduzir a ROP e promover a alveolarização (reduzindo também a DBP). A presença de adiponectina tem papel de mediador nos processos inflamatórios e metabólicos, ajudando a controlar a cascata inflamatória e a reduzir o estresse oxidativo. A presença de componentes imunobiológicos, como imunoglobulinas ajuda a reforçar a resposta contra infecções. A lactoferrina apresenta propriedades anti-inflamatórias e eleva a expressão de receptores no sistema cardiovascular.

Além disso, a presença de células-tronco pluripotenciais poderiam se diferenciar em cardiomiócitos, atenuando as alterações anatômicas causadas pela prematuridade. Outro elemento importante é a presença de HMO’s ou carboidratos complexos do leite materno: presentes em maior quantidade no leite da mãe de prematuros, estão diretamente envolvidos na vasodilatação ediada por NO e ajudam a prevenir a ECN, além de atuarem na manutenção do equilíbrio hemodinâmico como um todo, promovendo o desenvolvimento cardiovascular.

Quando falamos em amamentação de prematuros extremos, precisamos conhecer bem os desafios que vamos enfrentar. O bebê que nasce prematuro extremo tem uma série de desvantagens em relação aos processos relacionados a colonização do microbioma infantil, que também reconhecida como um aspecto importante da saúde futura de prematuros extremos e influenciada por diversos fatores. Entre eles, as condições de saúde e a dieta maternas e a exposição a agentes ambientais precoces, como tabagismo e poluição. A idade gestacional, a microbiota vaginal materna e o tipo de parto também vão influenciar bastante e aqui já podemos começar a agir para oferecer um futuro melhor. A colonização intestinal e da pele materna são específicos para cada dupla e o tipo de alimentação oferecida é a ação que queremos destacar para tornarmos agentes de um futuro melhor.

Além disso, devido à prematuridade, não vai sugar o seio materno nas primeiras SEMANAS de vida. Na literatura, encontra-se descrito como fatores que reduzem a chance de amamentação de prematuros fatores como a dependência prolongada do estímulo mecânico para a retirada do leite. A renda e a educação materna também interferem de formas variadas de acordo com a realidade de cada país. A permanência prolongada dos prematuros na UTI, associada a maiores complicações clínicas ou não também interfere, pois prolonga o tempo que as mães dependem do estímulo mecânico para esgotar leite. As próprias complicações dos prematuros podem reduzir a amamentação, especialmente em pacientes com displasia, enterocolite e hemorragia cerebral grave, pois retardam a transição para o seio materno.

As recomendações da OMS para o suporte nutricional adequado de prematuros de muito baixo peso considera como pontos fortes para melhorar a nutrição dessa população: a administração de leite materno da própria mãe como padrão ouro de dieta; oferta de leite humano de banco pasteurizado na falta de leite da própria mãe; iniciar a oferta de leite humano assim que o prematuro estiver estável do ponto de vista hemodinâmico e incentivar a oferta de leite materno exclusivo nos primeiros 6 meses de vida.

Nesse sentido, a presença dos pais na UTI pode ser um fator facilitador da nutrição adequada. Isso porque o leite materno da própria mãe pode ser considerado um componente fundamental no seu cuidado de forma global. O leite materno oferece benefícios que ultrapassam os da qualidade nutricional. Por isso mesmo, o apoio familiar é muito importante, para permitir que essa mãe possa ter acesso diário e prolongado à UTI Neo. Ela vai precisar de uma rede de apoio para os outros filhos, para as tarefas domésticas e até para se deslocar ao hospital e ter acesso a alimentação e descanso adequados, outro fator importantíssimo é o apoio da equipe multidisciplinar da UTI.

Os profissionais devem estar familiarizados e capacitados com as particularidades do processo de produção de leite, estímulo, oferta e transição para o seio materno relacionados essa população que é muito diferente de todas as outras. Ações simples, como a promoção do cuidado canguru, são capazes de reduzir a mortalidade, as infecções graves, a hipotermia e melhorar o ganho de peso, aumentando a prevalência de amamentação na alta. O cuidado canguru comprovadamente aumenta o crescimento cerebral, aumenta a satisfação materna e facilita o vínculo parental.

Outra ação relativamente simples e que tem sido cada vez mais incluída nas pesquisas é a imunoterapia oral do prematuro. Consiste na administração de 0,1 ml de colostro materno na mucosa oral de prematuros. O objetivo não é diretamente nutricional, mas o de estimular o sistema imunológico das mucosas, composto pelo tecido linfático presente nas mucosas oral, intestinal e respiratória. Esses sistemas são interligados e trabalham de forma que um é capaz de potencializar a ação do outro. Mas como os prematuros permanecem muito tempo sem receber leite na mucosa oral, acabam perdendo esse benefício.

Vários estudos demonstram que essa simples ação é capaz de organizar a resposta imunológica imatura e reduzir as complicações comuns da prematuridade, como displasia, retinopatia e sepse tardia. Outro benefício que os estudos agora começam a demonstrar é a possibilidade de as mães se envolverem diretamente nesse cuidado e sentirem que mesmo quantidades muito pequenas de seu leite são capazes de ter um impacto duradouro na vida de seus filhos. Embora os estudos sejam iniciais e ainda não muito numerosos, todos demonstram que essa é uma prática segura e deve ser estimulada.

Para finalizar, embora tenhamos desafios imensos na área de nutrição neonatal, as pesquisas têm trazido muito conhecimento a respeito da importância do suporte nutricional adequado de prematuros e do protagonismo do leite materno na UTI Neonatal. Esse conhecimento possibilita que novas práticas sejam estabelecidas, visando sempre a melhoria da qualidade assistencial. A oferta de nutrição parenteral precocemente, o início imediato do estímulo à amamentação, o acompanhamento do crescimento durante a UTI Neonatal e o trabalho multidisciplinar em torno da nutrição de prematuros deve ser o foco de trabalho das UTI’s. O suporte nutricional de prematuros é um exemplo claro de como uma abordagem personalizada pode influenciar positivamente na saúde a longo prazo.

Profa. Dra. Mariana González de Oliveira

 

Agradecimento à Amil, pelo apoio às ações da ONG Prematuridade.com e por reconhecer a importância do leite humano para a Nutrição do bebês prematuros.

Compartilhe esta notícia

Histórias Reais

Veja histórias por:

Receba as novidades

Assine nossa newsletter e fique por dentro de tudo que acontece no universo da prematuridade.