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09.12.2020

09 de dezembro: Dia do Fonoaudiólogo

Minha jornada como fonoaudióloga iniciou há 31 anos quando comecei a atender no consultório crianças com a queixa de alterações nas funções orais de sugar, respirar, mastigar, deglutir e falar. Além disso, depois de apenas seis meses de formada já dei entrada no Mestrado e ministrava aulas na graduação e Especialização. Naquela época, eu já sentia uma enorme vontade de estudar mais para ajudar crianças com desafios para sugar, deglutir, mastigar e falar. Naquela época, o trabalho fonoaudiológico com crianças com dificuldades alimentares praticamente não existia. A atuação dos fonoaudiólogos era restrita e dava os primeiros passos em direção a atuação com a população pediátrica de prematuros e neuropatas.

Mas algo muito inusitado começou a acontecer na minha vida profissional. Depois de quase vinte anos de formada, já com Especialização, Mestrado e Doutorado, comecei a receber no consultório crianças com a queixa de “não comer”. E, embora eu me dedicasse muito, os exercícios e técnicas que eu tanto tinha aprendido não estavam sendo suficientes para ajudar essas crianças. Não existia no Brasil até então um caminho, um referencial teórico em que eu pudesse me pautar. As raras pesquisas publicadas sobre a criança com dificuldade alimentar no Brasil não incluíam a atuação do fonoaudiólogo com essa população específica. O atendimento e publicações na área da disfagia pediátrica cresciam e a atuação dos fonoaudiólogos ganhava corpo e diretrizes nas UTIs neonatais, mas definitivamente meus pacientes não se encaixavam nesse “perfil”. Eles não apresentavam disfagia (e chegavam ate mim com pilhas de exames que comprovavam isso!) ou alguma outro “problema” que eu pudesse identificar como causa da recusa ou seletividade alimentar apresentada. Outros pacientes, sequer apresentavam alterações motoras-orais que justificassem a aplicação de “exercícios”. Foi para compreender essa população crescente que estava sendo direcionada até mim que iniciei uma busca incansável para achar uma forma, algum “exercício novo” que pudesse ajudar as crianças que apresentavam resistência em comer.

Ampliando a minha visão além da boca e do estômago

Foi então que fui aos EUA e pude estar pessoalmente pela primeira vez com a Dra. Morris. E foi em seu especial centro de treinamento, cercado por uma natureza exuberante que pude aprender sobre coisas que eu desconhecia e outras que eu não sabia que faziam parte da “fonoaudiologia” ou mesmo da criança com dificuldade alimentar. Essa especial e transformadora vivência me possibilitou aprender pela primeira vez sob uma perspectiva integrativa de ver o mundo e principalmente de compreender meus pacientes com a queixa de não comer. Aprendi a realizar conexões entre meus achados clínicos, mas principalmente, a ampliar meu olhar, tirando definitivamente o foco da boca dos meus pacientes.
Tudo fez um enorme sentido para mim e ali já naquele momento com a Dra. Morris pude sentir a vibração e o impacto daquele nosso primeiro encontro na minha vida pessoal e principalmente profissional.

A aplicação da Metodologia

Desde que tive contato com a Dra. Morris e estudei com profundidade suas publicações sobre as inter-conexões do desenvolvimento alimentar infantil, iniciei a aplicação de sua perspectiva integrativa com meus pacientes com desafios alimentares.
Fui a cada dia obtendo resultados incrivelmente significativos com os pacientes que apresentavam a queixa de não comer. As transformações e mudanças na relação da criança com os alimentos e com o momento da refeição, e o retorno a alimentação com conforto e habilidade começaram a ser relatadas aos pediatras pelas próprias mães dos pacientes.
Aos poucos esses excelentes resultados alcançados com crianças que muitas vezes já tinham percorrido dezenas de profissionais e realizado outras dezenas de terapias, foi divulgado, sendo a principal e maior forma de propagação do meu trabalho sob a perspectiva integrativa. Mas junto com todas essas conquistas, também vieram os questionamentos: O que você faz? Como assim? Quais são os exercícios? Aonde você aprendeu isso? E mais ainda: Mas... fonoaudióloga trata criança que não come?

Alguns pontos do início da atuação do fonoaudiólogo com crianças com desafios para sugar e deglutir

No Brasil, os fonoaudiólogos começaram sua atuação na área alimentar atuando com crianças e adultos com desafios para sugar e deglutir. O foco esteve quase sempre no tratamento/gerenciamento das disfagias orofaríngeas (neurogênica, mecânica ou psicogênica), com uso de técnicas e manobras voltadas à transição da via alternativa de alimentação para a via oral, quando possível, bem como à adequação das funções envolvidas na alimentação (sucção, respiração, deglutição e mastigação).

Inicialmente a população atendia pelos fonoaudiólogos era composta na sua grande maioria por bebês prematuros e ou crianças com comprometimentos neurológicos. Seguindo a tendência internacional de publicações iniciadas fortemente na década de noventa, o foco da atuação dos fonoaudiólogos era a estimulação intra-oral.

Nessa época, as pesquisas mostravam que o amadurecimento das funções orais possibilitava a redução no tempo de internação destes bebês, bem como melhora na sua qualidade de vida. Houve um aumento significativo de publicações internacionais entre 1990 e 2000 com novas técnicas e estratégias orais (estimulação tátil-térmica-gustativa, estimulação sensório-motora, etc) com efeitos positivos na reabilitação da sucção e deglutição em adultos e crianças com disfagia. Vale lembrar que grande parte desses artigos realçavam o efeito da temperatura fria e do sabor azedo como melhores estímulos para reabilitação.

Também fica evidente o modelo de atuação multidisciplinar para as questões alimentares. Essa atuação em equipe, na qual o fonoaudiólogo começou a ser inserido, foi reforçada por várias pesquisas e publicações internacionais nessa época, realizadas com o intuito de “unir esforços” para auxiliar a população de crianças que cada vez mais tinha a vida prolongada com o uso da gastrostomia e sondas nasogástricas.

Com isso, mais crianças foram direcionadas a fonoaudiólogos para avaliação e reabilitação oral. Não existiam tantos fonoaudiólogos aqui no Brasil com formação suficiente, quanto bebes e crianças com desafios para se alimentar. Os fonoaudiólogos que incorporaram as terapias voltadas para alimentação na sua pratica clínica, tiveram que se “desdobrar” para corresponder a crescente população de crianças com dificuldades para sugar e deglutir.

O fonoaudiólogo começa a atuar com a criança com Dificuldade Alimentar no Brasil

Por outro lado na década de 2000 iniciavam publicações aqui no Brasil sobre a criança típica com dificuldade para comer. As primeiras publicações foram realizadas por pediatras, nutrólogos e nutricionistas e definitivamente não mencionavam a participação de fonoaudiólogos como um possível profissional integrante da equipe que atendia essas crianças. A seletividade ou mesmo a resistência em comer era tratada do ponto de vista médico, nutricional e comportamental. E quase sempre quando não era diagnosticado uma possível causa orgânica para o padrão alimentar apresentado, atribuía-se a queixa apresentada a um problema comportamental. ( KACHANI, A. T. et al 2005; ALMEIDA, C. A. N. et al 2012)

Em contrapartida nessa mesma época nos EUA alguns pesquisadores iniciaram a descrição de um modelo biopsicossocial no qual os fatores fisiológicos, comportamentais e sociais passaram a ser observados, contribuindo para o desenvolvimento das dificuldades alimentares infantis, sendo críticos e essenciais para uma compreensão completa da etiologia dos problemas alimentares infantis. Crist e Napier-Phillips (2001)

Em 2000 com a publicação revisada da segunda edição do livro: “ Pre-feeding skills: A comprehensive Resource for Mealtime Developmnet”, Morris & Klein 2000, apresentam uma nova perspectiva no modo de compreender e tratar as crianças com dificuldades alimentares infantis. O livro mostra fortemente a necessidade da “compreensão da criança por inteiro” (whole-child perspective) e demonstra que a experiência da criança com os alimentos influência seu interesse por eles. As autoras demonstram que as condições clínicas das crianças (doenças crônicas ou agudas) ainda presentes ou não, bem como sua percepção sensorial, podem impactar e influenciar no seu desejo e na habilidade para se alimentar. Demonstram pela primeira vez a necessidade de inter-conexão dos aspectos envolvidos no universo da criança para sua compreensão e auxílio efetivo.

Aqui no Brasil, em 2015, publiquei o primeiro artigo relatando a atuação do fonoaudiólogo junto a equipe multidisciplinar sob essa nova perspectiva proposta por Morris & Klein (2000): “O papel do fonoaudiólogo no diagnóstico e tratamento multiprofissional da criança com dificuldade alimentar: uma nova visão.” (Junqueira et al 2015).
Nesse momento eu já sentia uma enorme ^necessidade^ de compartilhar os ótimos resultados alcançados e nesse artigo relatei um caso clinico atendido com base na metodologia da Dra. Morris.

Em 2016 publiquei um estudo piloto de protocolo para atendimento multidisciplinar a criança com dificuldade alimentar. Nesse momento eu como fonoaudióloga auxilie na constituição e na elaboração do I Centro de Atendimento Multidisciplinar a criança com dificuldade Alimentar do Brasil. Maximino, et al(2016). Nesse momento abria-se uma oportunidade importante para o fonoaudiólogo, que junto com nutricionistas, pediatras e nutrologos começava a sedimentar sua atuação a essa população.

No inicio de 2015 com a criação do Instituto de Desenvolvimento Infantil pude ter a autonomia e os recursos necessários para auxiliar ainda mais a população de crianças com dificuldade alimentar.

Em 2017 publiquei o livro : “ Por que meu filho não quer comer? Uma visão além da boca e do estômago”. Esta publicação inicialmente teve por objetivo auxiliar e esclarecer as mães que chegavam em grande número ao meu Instituto com filhos com recusa e dificuldade para comer, já tendo sido assistidos por outros profissionais sem o resultado desejado. Nesse livro apresentei novamente o pressuposto integrativo descrito anteriormente por Morris & Klein (2000) de conectar todos os aspectos que compreendem o aprendizado alimentar. Convoquei literalmente a todos os leitores a ampliarem seu olhar para ajudar a crescente população de crianças com a queixa de não comer. E pela primeira vez no Brasil começo a trazer conceitos que antes eram desconhecidos ou pouco valorizados pelos profissionais que atuavam com essa população.

No mesmo ano após um apresentação no evento anual da ILSI BRASIL ( INTERNATIONAL LIFE SCIENCES INSTITUTE DO BRASIL), fui convidada a publicar o material “Relações Cognitivas com o Alimento na Infância: abordagem ampliada e integrada” ,(Junqueira,2017) onde descrevo novamente a necessidade da conexão de todos os aspectos envolvidos no aprendizado alimentar.

Desafios a Vencer

Com essas publicações que descreviam a atuação do fonoaudiólogo junto a crianças com desafios alimentares um novo cenário se fez. Os fonoaudiólogos começaram a receber ainda mais em seus consultórios pacientes com a queixa de não comer ou de seletividade alimentar. Esses pacientes eram referidos por pediatras, gastropediatras, nutricionistas, odontopediatras, alergistas e até mesmo pela própria família da criança com queixa alimentar.
Porem os fonoaudiólogos na sua esmagadora maioria estavam preparados para lidar com as questões orais, e como parte de nossa formação em “fazer a criança comer e beber”.
Por que como aqui já relatado, por muitos anos nossa principal atuação as crianças com desafios alimentares foi a realização de “estimulação oral”. Esse termo é ainda comumente utilizado nos dias de hoje e frequentemente ele estreita a atuação do fonoaudiólogo porque implica e traz subjacente a ele o objetivo imediato de “fazer a criança comer e beber”.
Muitos fonoaudiólogos continuam com foco nesse objetivo restrito de fazer a criança comer uma quantidade específica de alimentos ou texturas mais avançadas, com mínima atenção as questões físicas, sensoriais, e motoras-orais subjacentes, que poderiam tornar esse processo mais fácil para todos.
Essas são frequentemente atuações que visam “fazer a criança comer” ao invés de “envolve-la ativamente no processo do aprendizado alimentar”. Essa é uma distinção crítica importante.

Um sonho que começa a ser concretizado

E hoje no dia 9 de dezembro de 2020 – DIA DO FONOAUDIÓLOGO- iniciamos um momento muito especial para os Fonoaudiólogos que certamente engrandecera ainda mais nossa profissão.
O Instituto de Desenvolvimento Infantil (idealizado e criado por mim há seis anos) estabelece uma parceria histórica com a Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia- Uma Certificação para o Tratamento das Dificuldades Alimentares Infantis.
O maior objetivo da Certificação será CAPACITAR mais fonoaudiólogos a ampliarem seu foco para além das questões orais. Com isso espera-se uma mudança imediata e direta na terapia, com uma profunda valorização da importância do aprendizado alimentar (desde o momento do nascimento) e das refeições para a criança e para a família.
Nos empenharemos para que os fonoaudiólogos possam ter sucesso, abrangendo e compreender a alimentação da criança e os problemas motores orais dentro de um contexto mais amplo.
Isso significa que eles também vão aprender a honrar o fato de que algumas crianças podem se beneficiar com a aborgadem integrativa (ministrada no curso), porem podem nunca ser candidatas a alimentação por via oral ou adquirir um alto nível de habilidades motoras orais por causa dos riscos e perigos de aspiração, ou presença de severas incapacidades sensório-motoras.
O desafio será desenvolver um modelo de fonoaudiólogo que está trabalhando com crianças com alimentação por sonda cuja jornada em direção à alimentação oral deve fornecer-lhes todo o contexto das refeições em família. Esses objetivos frequentemente não se encaixam no contexto mais limitado de terapias que visão a estimulação.
Um dos maiores desejos é que essa Certificacao possa sensibilizar e formar fonoaudiólogos que valorizem e respeitem o conforto, a confiança e a competência do bebe e da criança para comer. Que auxilie os pais de seus pacientes estimulando a esperança, sem julgamentos ou rótulos.
E que possa atuar num contexto terapêutico ampliado e inter-conectado que valorize e tenha por objetivo tornar a criança capaz de participar da refeição em família com conforto e segurança.
Esse certamente deve ser sempre nosso maior objetivo no atendimento a essa população.

por Patrícia Junqueira, que atua no atendimento a bebês e crianças, é idealizadora e responsável pela Coordenação do Instituto de Desenvolvimento Infantil e membro do Conselho Científico da ONG Prematuridade.com
Fga. 2-5567

Referencias Bibliograficas

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1.
KACHANI, A. T. ; ABREU, C. L. M. ; LISBOA, S. B. H. ; FISBERG, M. . Seletividade alimentar da criança. Pediatria (USP), São Paulo-SP, v. 27, n.1, p. 48-60, 2005.

 

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