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08 de Agosto de 2013
A vida e a coragem de Miguel
“Uma gravidez que não foi planejada, mas muito comemorada. Parece que vejo nossas caras quando abrimos o resultado do exame de sangue. Eu já havia feito dois de farmácia, mas não acreditava que o esquecimento de um anticoncepcional poderia resultar numa gravidez. Nos olhamos, o Fernando ria e dizia: ‘Eu estou muito feliz!’. Eu chorava e dizia: ‘E agora? Eu moro em Porto Alegre e tu em Anta Gorda. Será que eu vou saber ser mãe?’ Bom, dali em diante aconteceu tudo.
Dar a notícia pra família, casar (nosso casamento foi no dia 14/04/2012), programar o nascimento... O Fernando cuidou de quase tudo, desde o casamento até o quarto do bebê. Eu, mesmo depois de casada, fiquei morando em Porto Alegre, pois precisava trabalhar e o emprego lá era bom. Se bem que eu nem sonhava que seria por tão pouco tempo.
No dia 04/05/2012, eu voltei de Porto Alegre para passar o fim de semana e tinha consulta com a Dra. Caroline, minha obstetra. Eu e o Fernando nos encontramos em Encantado e de lá seguimos pro consultório. Lembro que eu entrei brincando com a Dra., porque ela dizia: ‘Essa minha paciente é super decidida, sabe bem o que quer!’. Dizia em relação ao parto, por eu ter optado por cesárea. Então chegou a hora mais esperada, de ver o Miguel na ultrassonografia, a gente contava os dias pra fazer isso.
Cada mês era uma novidade. Antes do exame, como de costume, ela verificou minha pressão arterial e eu notei uma ruguinha de preocupação no rosto dela. Então ela verificou no outro braço e me perguntou se eu estava muito ansiosa ou nervosa. Eu disse que não, que nos últimos dias eu apenas notei que estava inchada, mas achei que fosse normal da gravidez. Lembro que ela até me repreendeu, disse que eu devia ter liga do pra ela. A Dra. disse que seria melhor eu ir para o hospital, para monitorar minha pressão.
No fundo eu já sentia que tinha alguma coisa errada, porque o telefone dela tocava, diziam que o filho dela estava com febre em casa, e mesmo assim ela ficou ali comigo. Foi pro hospital de Encantado e logo chamou o laboratório para fazer exames, pedindo que o resultado fosse imediato. Solicitou que fosse feita uma medicação para amadurecer o pulmão do bebê. Ela foi maravilhosa, ágil, profissional.
Umas 3 horas depois, ela veio até mim e me disse que iria me transferir para Porto Alegre, achava melhor eu estar em um hospital com UTI, pois o bebê poderia nascer. Nessa hora eu não consegui segurar as lágrimas, sem imaginar quantas lágrimas seriam derramadas nos próximos meses. Os celulares da minha mãe e do Fernando não paravam de tocar, meus familiares (tios, primos...) estavam lá no hospital, mas não podiam subir. Era uma tensão, minha cabeça não conseguia assimilar tudo o que estava acontecendo.
A médica então solicitou uma UTI móvel para me levar para a PUC e, logo depois, eu estava indo (não podia imaginar quanta coisa aconteceria dali em diante). No caminho, eu lembrava dos exames feitos nesses 6 meses, do como ele já era lindo na minha barriga, sempre fazendo pose para os médicos, desde os três meses mostrando que era um menino e que seria super agitado. Quando eu saí, já na maca da ambulância, pude ver meus tios e primos, todos sorrindo, mas aquele sorriso de preocupação, daqueles que tu olha e sabe que estão sorrindo pra não chorar.
O percurso de Encantado a Porto Alegre foi tranqüilo, minha mãe foi comigo na ambulância, enquanto o Fernando ia de carro logo atrás. Quando chegamos na PUC, minha barriga estava dura, o bebê se encolhia em um dos lados, acho que por causa do meu nervosismo. Entrei direto no Centro Obstétrico, fui examinada e a médica que me atendeu disse: ‘Olha, mãe, um bebê de 26 semanas tem 10% de chances de sobreviver, por isso precisamos tentar segurar mais um pouco.’
Aí vieram outras médicas e todas diziam a mesma coisa, os 10% que não saíam da minha cabeça. Mais exames. Diagnosticada, então, Pré-eclâmpsia Grave e Síndrome de Hellp. Nunca tinha sequer ouvido falar da Síndrome de Hellp, mas vi que era importante quando colocaram um cartaz na porta do meu quarto, escrito bem grande ‘HELLP’. Fiquei no centro obstétrico do dia 04 ao dia 08 de maio, nesses dias eram realizados exames de sangue a cada duas horas, verificação de pressão arterial, um monitoramento semelhante ao de uma UTI.
O Fernando ficou ali comigo, sentado em um banquinho, me dando força pra seguir em frente. As outras pessoas não podiam entrar, nem minha mãe. Eu não podia levantar, nem sentar, nem fazer qualquer esforço, tinha aparelhos monitorando tudo e enfermeira 24 horas comigo. Precisei de oxigênio porque a saturação começou a baixar. Me explicaram que meu bebê pesava cerca de 850 gramas, que era muito pequeno, mas que poderia nascer a qualquer momento.
Eis que, no dia 08 de maio, por volta das 14 horas, o médico me disse: ‘Angélica, tu confia em mim?’ Com um sinal afirmativo ele me disse ainda: ‘Vamos ter que interromper tua gestação. Tua pressão arterial está subindo e, nesse momento, é o parto ou a tua vida. Infelizmente, o bebê tem 10% de chances de sobreviver (de novo os 10%) e, no teu quadro, tuas chances são de 5%.’ O mundo caiu sobre minha cabeça. Nessa hora minha mãe estava comigo, conseguimos autorização para o Fernando ir tomar um banho e ela entrou no lugar dele.
Começou a preparação para a cesárea e minha mãe ligou para o Fernando vir acompanhar o nascimento. Ele até hoje não sabe como chegou na PUC, não olhou semáforos, cruzamentos e deixou o carro aberto no estacionamento do hospital. Enquanto isso, eu era encaminhada para o bloco cirúrgico. Lembro que abracei a enfermeira e chorei, chorei muito. Tudo era tão diferente do que eu sonhava e, ainda por cima, eu sabia que daquele bloco poderia sair apenas um de nós, ou talvez nenhum de nós. O que seria de mim sem o tão sonhado Miguel? O que seria do Miguel sem a mãe dele? E quando eles me perguntavam se o Fernando estava chegando eu chorava ainda mais, pois queria ele ali comigo. Enfim, ele chegou, sentou do meu lado e começaram a cirurgia.
Eu estava meio tonta, meio grogue por causa dos medicamentos para evitar convulsão, já o Fernando viu tudo. Ele nasceu a cara do avô paterno, mas era pequeno, muito pequeno. E quando eu falo de um bebê pequeno, a maioria das pessoas imagina alguém pesando seus 2,5kg, mas o nosso pesava 900 gramas. É indescritível a sensação, só quem vive pra saber. O médico disse: ‘Parabéns, o filho de vocês é bem bonitinho’. Dali em diante acho que eu dormi, o Fernando deu a notícia para as avós, tia e primas que estavam lá no hospital rezando, havia dado tudo certo. Os momentos seguintes foram do Fernando e do Miguel, eu permanecia em recuperação, com a pressão alta.
Estar no Centro Obstétrico e ver as mães chegando felizes com seus bebês foi indescritível, parece que abrem um buraco no teu peito e que ele não vai mais fechar. Elas saíam e voltavam com os bebês nos braços, o pai fotografando, a família feliz. Era assim que eu me imaginava! Eu estava ali sozinha, esperando notícias do meu bebê que, naquela hora, já estava na UTI Neonatal. As avós viram ele antes de mim, me diziam que era lindo, o Fernando também, dizia que ele havia feito xixi e que ouviu ele chorando. Mas eu via que estavam todos apavorados, com medo, angustiados. Parecia impossível salvar um bebê daquele tamanho.
Fui transferida para um quarto, mas depois, devido a pressão ainda estar alta, me levaram para o Centro Obstétrico novamente. E mais mães chegavam com seus bebês... e eu nem sequer ver o meu podia. Depois, voltando para o quarto, pude começar a ver o Miguel. Na primeira vez, lembro que o Fernando me dizia para falar com ele, pra tocar nele, que ele entenderia. Mas eu não conseguia, não podia ser o meu bebê, eu sonhei com um bebê cheio de dobrinhas, sonhei com a foto no bloco cirúrgico, aquela tradicional do bebê no colo da mãe. E ali não era nada disso. Era um serzinho tão indefeso, as pernas eram da grossura de uma caneta, parecia que se eu tocasse nele iria quebrar.
O Fernando segurou a barra sozinho nos primeiros dias. Miguel teve uma séria hemorragia pulmonar e eu só fiquei sabendo um tempo depois. Para mim, ele sempre dizia que o Miguel estava bem. Comecei a tirar o leite para oferecerem ao Miguel, uns dias depois que ele nasceu era oferecido 1ml de leite a cada 2 horas. Sim era 1ml, que depois foi pra 2 e 3. Quando ele passou a receber 10ml, para nós era como se tivéssemos ganhado na loteria. A alimentação era feita através de sonda. Eu estava no 8º andar do hospital e a UTI Neonatal era no 5º, então eu ia até lá inúmeras vezes por dia, e o Fernando dividia o tempo entre eu e o nosso filho. 11 dias depois eu tive alta, e esse foi um dos piores momentos da minha vida. Sair do hospital sem o nenê, deixar ele lá sozinho. A dor no meu peito parecia que ia rasgar a carne. Chorei o caminho todo até chegar em casa, eu e o Fernando quase não dissemos nada no percurso. Definitivamente, não era assim que a gente sonhava. Dali em diante começou a rotina, acordar de manhã e ir para o hospital, sair do hospital de noitezinha e ligar a cada 2 ou 3 horas durante a noite para saber se estava tudo bem. Foram 97 dias de UTI Neonatal, e eu estive lá todos os dias, sentada num banquinho ou numa cadeira, conversando com ele, cantando pra ele, fazendo carinho, fazendo com que ele soubesse que eu estava ali e estaria sempre.
Tiveram dias muito ruins, de chegar na UTI e o médico dizer: ‘Teu nenê ta ruim’ ou ‘teu nenê piorou muito’.Teve ainda o dia em que um me disse: ‘ao que tudo indica, teu nenê teve uma hemorragia cerebral, e isso quando não leva ao óbito, deixa muitas seqüelas’.Graças a Deus ele estava enganado, após um exame, verificaram que isso não aconteceu. Miguel perdeu muito peso, chegou a 690 gramas. Dava pra ver cada ossinho do corpo dele. Usava uma fralda RN, cortada ao meio, e ainda assim ela chegava no peito. Teve também o dia em que o Fernando precisou voltar para o trabalho, para casa. Minha mãe foi para Porto Alegre e ficou comigo até o dia da alta, enquanto o Fernando ia toda sexta e voltava no domingo de noite ou segunda de manhã. Ele foi todos os finais de semana, era puxado, mas era pela nossa família.
Quando o Miguel chegou a 1kg, me informaram que seria necessário uma cirurgia para correção do canal arterial, que é um ducto que liga o coração e o pulmão. As horas na sala de espera do bloco cirúrgico não passavam. Angústia, sofrimento, sentimentos que não têm como explicar. A cirurgia deu certo, o corte nas costas dele foi bem grande, nem consigo imaginar como conseguiram fazer num serzinho tão pequeno. Antes da alta ainda teve que fazer outra cirurgia, dessa vez uma hérnia inguinal. Eu fui aprendendo a lidar com ele, a dar banho (de paninho, porque ele não podia sair da incubadora), a dar a mão quando os aparelhos começavam a apitar, a conversar... fui aprendendo a ser mãe de prematuro.
O primeiro colo demorou muito, uns 40 dias eu acredito. Ele ficou tão aconchegado a mim que parecia que era um órgão do meu corpo. Ele ficou bem, ficou tranqüilo, ele estava com a mamãe. Eu dormia com uma fraldinha dentro da blusa e de manhã levava pra ele, assim ele passava o dia com o cheiro de mãe. É difícil explicar a alegria a cada grama, a cada centímetro conquistado. É difícil também explicar a tristeza, os bebês que chegavam sem as mães, porque elas não resistiram ao parto, com o mesmo quadro que eu. Os bebês que faleceram enquanto eu estava lá... essas cenas ficarão sempre na minha memória, é impossível esquecer. Eu fiz amigos na UTI, as mães dos bebês se tornaram minhas confidentes, trocávamos experiências, dávamos força umas pras outras, e cuidávamos dos bebês quando alguma não estava. Mantemos contato até hoje, já convidei até pra festa de 1 ano do Miguel.
A rotina de ir para o hospital era como se eu estivesse indo para o trabalho, todos os dias mais ou menos na mesma hora. Lá eu exercia meu papel de mãe e me acostumei com isso. As pediatras residentes viraram minhas psicólogas, com elas eu chorava, desabafava, tentava entender por que comigo. Eu só queria que minha história fosse igual a de todo mundo.
Bem, com o passar dos dias os amiguinhos do Miguel foram tendo alta e a gente ficava lá. A dependência do oxigênio foi o principal motivo do tempo de UTI. Tentava tirar o tubo e ele não agüentava, aí voltava. Foram tantas intercorrências, que não teria como escrever. E tinha também o medo, será que ficarão seqüelas? Vai andar, sentar, enxergar, ouvir? Era dia após dia de muita expectativa e vontade de estar em casa, de assistir um filme no sofá da sala e tomar um chimarrão com a família. A gente não desejava grandes coisas, o que a gente mais queria era estar juntos.
Após várias tentativas de tirar o oxigênio, sem sucesso, os médicos então decidiram que ele poderia ter alta com oxigênio. Então fomos pra casa com aqueles aparelhos todos, os tubos já estavam instalados no quarto, na cozinha, etc. A ida pra casa não representou vida normal pra nós pois, além da restrição de visitas, tinha também aqueles mesmos bipes dos aparelhos da UTI lá dentro da nossa casa. Um mês depois conseguimos, enfim, que ele ficasse sem os aparelhos, acho que a emoção deve ser semelhante a uma criança que aprende a falar, é um orgulho que não cabe no peito, uma vontade de gritar: ‘ele conseguiu’!
Quinze dias após eu ter alta do hospital terminou minha licença maternidade. Os médicos me deram atestado para, no mínimo, mais dois meses, uma vez que eu tinha um filho com oxigênio e aparelhos em casa. Porém, para minha surpresa, fui demitida do trabalho no dia em que terminou a licença. Não foi fácil, sem trabalho, com filho pequeno, contas para pagar, embora tivéssemos convênio, além das despesas de comida, deslocamento, tinham também itens que o convênio não cobria e nós pagávamos para agilizar os procedimentos e salvar a vida do Miguel.
Conseguimos, ele está aí, nos surpreendendo a cada dia que passa, e isso é o que importa. Acho que a vida da família de um prematuro nunca volta ao normal. Ele tem 11 meses e até hoje eu acordo várias vezes durante a noite pra ver se ele está respirando. A gente aprende a dar mais valor às pequenas coisas, cada conquista é comemorada como se o mundo fosse acabar amanhã. E nessas horas eu penso que tive sorte, muita sorte em ser mãe de prematuro pois, essa pessoa, que um dia coube na palma da minha mão, me ensinou que nada é impossível, que a fé realmente remove montanhas e que amor de mãe é único. É o sentimento mais forte que uma pessoa pode sentir.
Miguel fez 1 aninho dia 08 de maio, nesse tempo quase perdemos ele tantas vezes, eu quase morri também, mas estamos os dois aqui. Aliás, os três aqui, eu, Fernando e Miguel aproveitando cada segundo do presente que é a vida. Valorizando cada pequeno gesto e tentando, de alguma forma, ajudar os pais de prematuros, para que permaneçam fortes e nunca percam a esperança, pois esses pequenos guerreiros são muito mais fortes do que a gente imagina. A festa de aniversário foi no Dia das Mães, porque não existe melhor dia para comemorar a vida, o amor, o primeiro ano da razão das nossas vidas.”
Angélica, mãe do Miguel