O Brasil é um país marcado pela desigualdade social. Com a chegada no país do coronavírus, as gestantes e as crianças na primeira infância vulneráveis serão profundamente afetadas. As medidas restritivas necessárias tomadas devem ampliar essa desigualdade que se acentuou nos últimos quatro anos. Haverá ainda mais diminuição da renda das famílias, especialmente para os 38,3 milhões de trabalhadores informais já em situação insustentável.
Centenas de milhares de gestantes e aproximadamente mais de 10 milhões crianças na primeira infância, especialmente aquelas mais vulneráveis de zero a três anos, devem sofrer consequências desastrosas em curto, médio e longo prazos – o que inclui aqui os brasileirinhos que ainda não nasceram, mas já sofrem as consequências.
A gestante necessita de alimentação adequada, pré-natal completo, apoio da família e um ambiente acolhedor. Como fazer uma alimentação adequada com a falta de dinheiro? Como fazer um pré-natal completo numa situação dessas se, mesmo antes do coronavírus, pelo menos 1 milhão das cerca de 3 milhões gestantes do país não faziam um pré-natal adequado de ao menos sete consultas?
Gestante sem nutrição adequada pode resultar em gestação de alto risco. A anemia a coloca em risco durante o parto além de favorecer o parto prematuro. A falta de alimentos da mãe na primeira metade da gravidez pode ter impacto no aumento de anomalias no sistema nervoso central do bebê, assim como no aumento de risco de doenças associadas à saúde mental. A falta de alimentos na segunda metade da gravidez está relacionada com baixo peso ao nascer e aumento da incidência de diabetes, doenças respiratórias e cardiovasculares do bebê quando adulto.
A época da gestação, e especialmente os primeiros 3 anos de um bebê, são fundamentais para o resto da vida de um ser humano. Mesmo antes do nascimento, nos últimos meses de gestação, se inicia um processo de conexões entre os neurônios. Logo após o nascimento, há um movimento intenso e fantástico em que trilhões de conexões são feitas, o que é absolutamente necessário para se ter um ser humano integrado e completo. Para isso é preciso ter alimentos em casa em um ambiente carinhoso, aconchegante e estimulador, se possível, sem estresses. Quantos milhões não têm e não terão essas necessidades contempladas?
A falta de alimentos provoca a desnutrição infantil, que está vinculada diretamente às condições de vida das famílias de baixa renda e leva a graves consequências para o crescimento e desenvolvimento de meninos e meninas. Além disso, é responsável por 55% das mortes de crianças no mundo todo.
A falta de cuidados com a criança, violência, abusos, negligência, pobreza e a fome podem se constituir em fonte de estresse tóxico, que reduz conexões neuronais com todas suas consequências deletérias, principalmente no aprendizado e cognição, e contribui com o desenvolvimento de doenças crônicas quando adultos.
Isso assusta e lembra o que aconteceu na fome holandesa no inverno do final de 1944 até maio de 1945, quando por cerca de 6 meses durante a ocupação nazista, bloquearam o fornecimento de alimentos. Nesse período, 4,5 milhões de pessoas foram afetadas e sobreviveram e 22 mil morreram de fome. Apenas seis meses de privações provocaram consequências graves por pelo menos duas gerações.
Um estudo holandês descobriu que os filhos daquelas mulheres grávidas expostas à fome eram mais suscetíveis a diabetes, obesidade, doenças cardiovasculares, microalbuminúria e outros problemas de saúde. Além disso, os filhos dessas mulheres eram menores, como esperado. No entanto, surpreendentemente, quando essas crianças cresceram e tiveram filhos, esses bebês, por sua vez, também foram considerados menores que a média. Alguns cientistas suspeitam que estes efeitos sejam passados adiante por meio de mudanças epigenéticas. É isso que nos espera? Problemas intergeracionais para milhões?
Por tudo isso, além de proteger os mais idosos, que são os primeiros a serem atingidos pelo coronavírus, podendo levar à morte, é preciso fortalecer gestantes e crianças, com medidas de proteção social robustas, identificando cada família vulnerável e garantindo a cada uma delas alimentos, isto é cesta básica e de higiene e limpeza, além de dinheiro por meio de uma renda básica para se ter um mínimo de vida digna.
É possível que após o coronavírus as mais de 43 mil equipes do saúde da família, que incorporam os 264 mil agentes comunitários de saúde, que atendem mais de 130 milhões de habitantes, somados aos mais de 80 mil líderes da Pastoral da Criança e aos 20 mil visitadores do programa Criança Feliz, tenham que ser qualificados em um programa de redução de danos de saúde e social em cada família vulnerável.
Ainda, é preciso fortalecer o SUS, que está em processo de depauperização há anos. É preciso empatia e solidariedade de todos – e nisso o brasileiro sempre foi muito generoso. É preciso mais governo pelo menos para os mais vulneráveis. Quanta falta faz um pacto nacional pela infância envolvendo a sociedade civil e governos! Que falta faz Betinho nessas horas!
Halim Antonio Girade é médico, mestre em ciência política, ex-Secretário Nacional de Promoção do Desenvolvimento Humano, ex-oficial do Unicef e ex-secretário da Saúde de Goiás. Coordenou a formulação do Programa de Saúde da Família e as implantações dos Programa de Agentes Comunitários de Saúde e Criança Feliz no Brasil.
Fonte: Veja (notícia original publicada em 15/04/20).